Mais uma obra do saudoso António Lúcio Vieira que, como habitualmente, nos chegou pela mão do nosso camarada Carlos Pinheiro.
O IMITADOR DE PÁSSAROS
Três filhos chegavam bem. Não é que o homem não tivesse arreganho para
mais, mas a pobre da Catarina, meio enfezada e com aquelas mazelas que lhe
ficaram dos partos anteriores, dizia o médico da Caixa que não estava lá muito
a modos de emprenhar outra vez, até para evitar que daí viessem sobressaltos.
Que tivessem cuidado.
Entretanto, sem mais aquelas, mal se deu por ela, a mulher estava outra vez
de esperanças. É a vida, deixava ela, com um encolher de ombros e em voz baixa,
às vizinhas e às colegas da fábrica das lãs, mal lhe revelavam estranheza pelos
repetidos vómitos e náuseas que a atacavam, pelo frequente aumentos das idas ao
urinol e a própria aversão às vulgares comidas e até a corriqueiros cheiros do
dia-a-dia, tanto em casa como na fábrica.
Mas era mulher rija, lá isso ninguém duvidava. Sempre que as conversas
tendiam para uma cautelosa possibilidade de se desfazer “daquilo”, Catarina
enrubescia, abriam-se-lhe as narinas, as veias do pescoço engrossavam como
cordas e os olhos quase flamejavam. Estavam bem livres, dizia, que os filhos
dela não era para serem deitados ao lixo, como nascidas ou bichos ruins.
O homem calava-se. Mais filho, menos filho… O pior era a saúde e a vida
dela. Se tivesse que se perder algum dos dois, que fosse a criança, ela nunca.
Mas não lho dizia, para não lhe enfrentar a ira, como sempre acontecia quando
alguma das outras alvitrava a segurança de um aborto. Respeitava-a, mas não a
temia, que ele não era desses de se calar à mulher, ou andar ao beija-mão dela.
Mas conhecia-a, e bem, e bem sabia que, a danada, antes de torcer
quebraria, e que defenderia a vida de um filho, parido ou não, como se de si
própria se tratasse. E tinha-lhe amor também por isso e orgulhava-se tanto mais
dela, quanto dela colhia os exemplos de coragem, o arreganho à luta pela vida,
a ternura e o esmero com que amanhava a casa e regalava os cachopos, com os
vigilantes cuidados das fêmeas das feras, ou o mimava e ataviava a ele, com os
enleios que só se expressam quando se quer muito. E ela queria-lhe tanto como
se ele fosse o mais velho e o mais precioso dos filhos daquele lar.
Um dia, quase em fins de Setembro, nasceu um menino, no hospital da vila.
Lindo, como são os meninos quando nascem. E são, graças a Deus, que para
desgraças e mazelas bem chegavam as que a mãe carregava aos ombros, desde a
gravidez e o parto do primeiro dos rebentos. Na imparável correria dos dias, o
puto crescia, crescia e enchia os olhos daquele pai, que todos na vila e no
casal onde vivia, conheciam por Cravo Roxo.
Embora muitos não soubessem muito bem se aquilo era apelido de família ou,
devido à sua profissão de jardineiro da Câmara - herdada do pai que já se
ocupara das mesmas funções desde rapazola, o qual era igualmente tratado por
esse tão peculiar nome – ou se se tratava apenas de uma engraçada alcunha.
Fosse como fosse, o nome prestava-se a brincadeiras e a alguns momentos de
diversão.
Veja-se: o Tarata, companheiro de profissão na Câmara, modesto trabalhador
em eterno conflito com o dinheiro, ao qual, dizia, nunca tinha feito mal, para
logo se lamentar que o “safado” – o dito dinheiro, entenda-se - parecia ter-lhe
um ódio de morte e não querer nada com ele. Daí que, com desusada frequência,
mal se chegava ao meio do mês, já o pobre do Tarata andava com a bolsa a dar a
dar, pelo que recorria ao bom coração do Cravo Roxo e às suas parcas reservas
financeiras, para que lhe abonasse uns trocos até à chegada do salário.
E o Cravo Roxo, que nascera com aquele desgraçado defeito de nunca negar
auxílio a quem dele necessitasse, lá ia adiantando umas moedas para o pobre de Cristo
comprar pão para os filhos. Porém, naqueles meses em que a mulher do Tarata ia
de jorna para as ceifas, para as vindimas e para a azeitona, dos senhores
abastados da Meia Via e de Riachos e, por via desse reforço, entravam mais uns
dinheiritos, o Tarata apressava-se a atirar ao colega algo como: “Este mês
não te cravo, ó Cravo Roxo”.
Companheiros inseparáveis, era frequente vê-los, nas horas vagas, na beira
do rio, junto ao viveiro de plantas da Câmara, na Várzea dos Mesiões, que ambos
de resto tratavam com um orgulhoso carinho paternal, quer nos petiscos na tasca
do Vítor, nas proximidades do matadouro – ali frente a frente com a rival tasca
do Razões, que lhe disputava a clientela - nas afamadas festas do Boi Danado,
na Meia Via, próximo do Casal da Juge, onde o Cravo Roxo nascera, ou, quando era
Verão, na “praia dos tesos”, aquele precioso areal na margem do Almonda, não
muito distante do viveiro, que as cheias de Inverno alagavam e para onde as
gentes da vila, de menor recursos, se apressavam, quando o calor apertava.
Confraternizavam assim, como amigos, que se orgulhavam de ser, a ponto do
Tarata ter sido honrado com um convite para padrinho de batismo do mais recente
rebento do Cravo Roxo. As próprias esposas eram amigas e juntavam-se a eles,
naquela minúscula praia fluvial, principalmente aos domingos, quando os homens
estavam livres e Catarina folgava do trabalho na fábrica das lãs, situada
também ali a dois palmos do rio. Um dia, numa das habituais petiscadas na tasca
do Vítor, o Tarata deu nas vistas e tornou-se, in extremis, quase
um herói, aos olhos do compadre e amigo.
Abra-se aqui um parêntesis para esclarecer a origem daquele apodo de
Tarata, que lhe ficara por ter cumprido uns longos três anos de serviço
militar, devido a pesado castigo. Confessava ele que, num dia de desvario,
enchera o saco e dera um arraial de porrada a um sargento lateiro, que o andava
a atazanar. Cumprida a pena de prisão, o desgraçado, para o vergar, passou a
trata-lo ainda pior, pelo que, “para não perder o hábito”, não tardou a levar
outro enxerto, de caixão à cova. Conclusão: tudo somado, três anos “por conta”
do exército, que os pais dele, de resto, agradeceram, mau grado a ausência do
filho. Dizia o progenitor do detido que, enquanto lá estava dentro, não andava
na boa-vai-ela, a coçar o rabo pelas esquinas e a comer e a beber à sua custa,
que o desgraçado do madraço já tinha bom lombo para trabalhar. Ficou-lhe de
emenda a prisão.
Numa das habituais petiscadas na tertúlia do Vítor, repete-se, o Tarata, em
suprema demonstração da incondicional amizade que o unia ao Cravo Roxo, viria a
livrá-lo de graves apuros, quiçá até da própria morte. A coisa conta-se
facilmente. Ia o petisco já em desenfreada rédea solta, mercê do avançado
estado de consumo, devoradas que estavam as febras, as morcelas de arroz, a
broa de milho e, principalmente, os incontáveis malhões de tinto, quando a
porta de vaivém do estabelecimento se abre, dando entrada a uma catraia,
dezassete a dezoito anos bem nutridos, com a incumbência de chamar o pai que,
agastado com a sorte, batia, numa das mesas do canto, uma partidas de sueca,
com alguns amigos alheios à balburdia dos petisqueiros.
De pé, na ocasião, o Cravo Roxo, mais o vinho que já carregava, travou o
passo à moçoila e fez ouvir, com os restos de barítono, que os embargos da voz
lhe permitiam, a já conhecida quadra que sempre cantarolava, quando o espírito
estava em alta. Era, de resto, uma quadra que - fazia questão de esclarecer –
ouvira desde garoto ao falecido pai, alentejano, nascido para as bandas de Vila
Viçosa.
Assim, de copo na mão e descarado sorriso e escorrer-lhe no rosto,
balançando o tronco frente à jovem, a qual tentava livrar-se, tanto do bafo
azedote, que de dentro tresandava, com as tentativas do homem para lhe impedir
a passagem, o Cravo Roxo entoava: “Cravo Roxo à janela/ é sinal de
casamento/ menina recolhe o cravo/ que o casar inda tem tempo.” Não
tardou que começassem a cair santos dos altares, devido ao que pai e filha
entenderam como descarada e reles provocação. Mal se deu por ela, deitando lume
pelos olhos, já o progenitor da moça saltava do mocho onde se sentava, pegava
nele por uma perna e o erguia no ar, pronto a lança-lo, como machado de
carrasco, sobre a cabeça do desgraçado.
Valeu-lhe ali a pronta intervenção do Tarata, que lhe agarrou o banco
quando este já descia, como um raio fulminante e implacável, sobre o
emborrachado cantador. De pronto auxiliado, diga-se por justiça, pelos
restantes homens, petiscadores e “suequeiros”, que logo o cercaram, a fim de
evitarem uma desgraça.
Seguiu-se a costumada tentativa de apaziguamento do enfurecido pai,
recordando-lhe a reconhecida bonomia e respeitosa postura do pobre bêbado e a
tradicional falta de tacto e compostura que sempre se abate sobre as vítimas
dos excessos etílicos. Porém aquela repentina e decidida reacção do ofendido
devia, certamente, ser resultado de algum antecedente desaguisado, comentavam
alguns, à boca pequena. Também por esse infeliz e nefasto episódio, o Cravo
Roxo se sentia grato ao amigo e companheiro de trabalho.
Voltemos ao filho mais novo do casal, que entretanto crescia a olhos
vistos. Romeu, foi o nome dado ao menino no batismo. Porque a mãe adorava o
romântico entrecho do Romeu e Julieta, mas também porque o médico que cuidou
dela, durante a gravidez, tinha esse nome e ela havia de lhe ficar eternamente
agradecida, pelo facto do bondoso clínico, nem uma vez, lhe cobrar as consultas
e algumas mezinhas de que necessitava.
Viviam então num local quase ermo, a meio da descarnada encosta do
Babalhau, virada a nascente. Dali, mesmo sem se alcançar o cimo, avistava-se em
redor mais de uma légua e, depois, o local ficava a dois passos de quase tudo
onde o casal se movia: a fábrica das lãs, para onde Catarina diariamente se
encaminhava, manhã cedo, o viveiro camarário, onde o homem ocupava parte do
tempo de trabalho e o rio, com a “praia dos tesos”, para as horas de repouso
nos domingos de Verão.
Ah, e é bom não esquecer: a duas centenas de metros abre-se o largo do
matadouro onde, entre outros estabelecimentos similares, a tasca do Vítor
piscava o olho aos sedentos amantes dos petiscos e do carrascão.
Um local perfeito para se viver; perto, porém distante, do bulício da vila,
que crescia a olhos vistos. Passava-lhe à beira a camioneta da carreira, para o
Entroncamento, para Riachos e, sobretudo, para a Meia Via, onde Cravo Roxo ia
frequentemente confraternizar com os amigos de infância e, no sentido inverso,
para a garagem da empresa, no coração da vila, bem próximo da escola, no largo
do Quinchoso, onde os filhos aprendiam.
Romeu, já se disse, crescia por ali, a olhos vistos, descuidado e feliz,
ora subindo ao topo da encosta, daquele quase deserto Babalhau, ora
acompanhando o pai, nos tempos livres da escola, aprendendo com ele os segredos
das plantas e das flores e criando, ele próprio, as raízes de um desusado
carinho por aqueles milagres da natureza: as plantas, que emergem do chão e
crescem, crescem, e dão folhas e frutos e as flores, que uma qualquer mão de
artista esculpiu e pintou, com as mais deslumbrantes cores da natureza.
Feliz, mesmo sabendo que a vida, na modesta casinha onde moravam, não
sorria tanto, como sorria a vida nas casas de outros meninos, da escola onde
aprendia. Sobrava-lhe sempre a roupa dos irmãos, as coisas boas que encantavam
os outros meninos também o encantavam a ele, porém, ao contrário dos outros
meninos, ele não as conseguia. Apercebia-se das humilhantes diferenças sociais,
nas pequenas minudências do dia-a-dia, naquela exibição de bem-estar e
felicidade que se libertava dos rostos e atitudes dos meninos felizes, do
encantamento das horas do recreio na escola, quando lhes cobiçava os
brinquedos, as roupas caras, os lanches, as alvas batas lavadas e cheirando a
flores. Romeu sabia a diferença que ia do seu mundo de menino pobre ao dos
outros meninos da sua escola. E isso, antes de o tornar cativo de mágoas,
agitou-lhe a alma, espicaçou-lhe a vontade e incitava-o a aventurar-se pelos
caminhos da conquista do futuro.
Mas era novo, muito novo, o rapaz. Esperava-o uma juventude ameaçada pela
maceração dos dias, marcados pela carência de tudo o que era conforto e
felicidade e promessas de futuro. Saía da escola ao fim da tarde, metia pela
Serpa Pinto – por vezes parava na praça do peixe, no rabisco de algumas sobras
nas bancas de venda – e seguia pela Rua das Freiras, rumo ao matadouro e à
encosta que sobe à colina do Babalhau.
Já a mãe o esperava, para ajudar nas lides da casa, que os mais velhos,
vadios, já não iam pela arreata da sacrificada Catarina. E o garoto amochava
aquela vida, cumpria-lhe o fadário dos dias e tentava compensar o desalento e
as mágoas, com as breves fugas para junto do pai, nos jardins da vila e no
viveiro das flores, pegado à várzea do Almonda, onde crescia e se fermentava
para o futuro amargo que de perto o espiava.
Um dia, folgado dos deveres escolares e dos afazeres domésticos, subiu ao
cume da elevação – para encher de novo os olhos da paisagem que, de serra a
serra, o rodeava – e abeirou-se do hercúleo castanheiro que ali se plantava,
havia um ror de anos. Era aí que, empoleirado nas ramadas, brincava, aos
Tarzans, imitando o que via nas páginas do Mundo de Aventuras, que
os condiscípulos de escola, mais abonados, compravam e era
igualmente do alto do rijo tronco que se sentia no seu palco.
Recordava-se o petiz, naquela improvisada ribalta, daquelas raras e mágicas
noites em que o pai, quando lhe dava a pachorra – como o próprio afirmava,
sempre que o assunto vinha à baila - levava a família às récitas e às
variedades no Salão do Salvador, ou quando, numa única e inesquecível ocasião,
se sentaram no balcão do Virgínia, para assistir a uma revista, das que, vindas
do Parque Mayer, periodicamente demandavam a vila.
E era ali, nas troncadas dos ramos do velho castanheiro, que o garoto
exercitava a destreza do rei da selva e ensaiava a imitação das rábulas que a
memória retinha. Era no palco que ele queria estar. A divertir plateias, a
deslumbrar a assistência com a magia dos ilusionistas e a receber os aplausos.
Era, decididamente, essa a vida que sonhou seguir.
Era um brincar solitário, aquele do pequeno Romeu. Nas cercanias, naquele
Babalhau então quase deserto, eram raros os companheiros de brincadeira. Por
ali não se procurava habitação, que a zona, embora sobranceira à vila, para
poente, ficava à ilharga de tudo. Apenas pequenas hortas e courelas e, aqui e
além, uma ou outra discreta casa de gente modesta, sem meios para se instalar
no coração da vila, onde a vida se movimentava.
Brincava só, o infante. E sonhava com um futuro de artista, ora vestido de
rei, igualzinho ao dos dramas que subiam a cena no velho “salão do padre” -
como o pai chamava à pequena sala do Salvador - ora tirando pombas brancas de
um chapéu e cortando senhoras ao meio, como via fazer aos mágicos que sempre
lhe tiravam o sono, ora dizendo chorrilhos de disparates, como nas rábulas das
revista que, para além do mais, também mostravam mãos cheias de moçoilas, de
arregalar os olhos.
Um dia, terminado o parco lanche, após as aulas, o pequeno Romeu subiu, uma
vez mais, o tronco do castanheiro solitário. Um pouco acima da forca, onde os
ramos mais fortes se dividem, soltou a corda, que meses antes lá colocara e
preparava-se para, à semelhança de Tarzan, se lançar para uma ramada do lado
oposto. Nem por um momento o imprudente garoto suspeitou que a constante
exposição à torreira do sol, ao longo do Estio e às águas de Inverno, haviam
carcomido os filamentos da débil corda, tornando-a perigosamente frágil. Num
instante, as garras da tragédia abateram-se, sobre a vida do descuidado
benjamim da família Cravo Roxo.
A queda desamparada, o embate brutal das costas sobre uma pedra musgosa que
emergia do solo, a poucos metros do tronco, só por milagre divino não lhe
quebrou a coluna e o não matou. Horas depois, na urgência do hospital da vila,
o médico haveria de diagnosticar uma preocupante lesão pulmonar, originada por
trauma torácico. O pobre só não se finou naquele dia porque, dizia Catarina,
nas semanas que se seguiram, “não era aquele o seu dia”.
Porém a insuficiência respiratória, que a partir de então o condicionou,
viria a pautar a sua vida futura e a modificar-lhe radicalmente hábitos e
posturas. Romeu iria ser, no futuro, um homem limitado para o que lhe restava
de vida e suspeitava-se que os sonhos de menino, por tanto tempo e tão
deslumbradamente construídos, se terão esfumado naquela funesta tarde, como a
névoa das manhãs.
Alteraram-se-lhe os hábitos, o menino crescia agora ciente das suas
limitações, que aquele pulmão, danificado para sempre, o impedia de aturados
esforços e de demasiados sonhos. As proezas acrobáticas, as possibilidades de
uma profissão laboral que lhe exigisse esforço físico, estavam
irremediavelmente postas de parte e o jovem teria de enveredar por outros
caminhos e de construir outros caminhos de vida. Passava agora mais tempo na
observação do pequeno mundo em seu redor, na contemplação da natureza e nas
coisas que, noutras circunstâncias, lhe passarias despercebidas.
E descobriu, bem cedo ainda, as suas aptidões vocais, que lhe permitiam
sonorizar instrumentos musicais – marchava, descarado, atrás das bandas de
música, arremedando saxofones e clarinetes – mas também os sons de máquinas, de
portas a ranger nos gonzos e coisas assim. E imitava, quase na perfeição, o
grunhir dos porcos, o cacarejar das galinhas, o relincho das bestas, o coaxar
das rãs e uma infinidade de outros sons da fauna doméstica. Porém, eram as
vozes dos pássaros que melhor lhe saiam garganta, a ponto de não se distinguirem
a verdadeira voz da imitação. Um prodígio, aquele menino.
Nas andanças com o pai pelos jardins da vila, pelas cercanias do viveiro,
pelas margens do rio e pela encosta onde residia, abundavam as aves que, de
manhã ao anoitecer, não se cansavam de cantar. Regalava-se o moço com o canto
dos canários machos cativos nas gaiolas, ou libertos e felizes nas ramagens dos
pinheiros, com o chilreio dos pintassilgos na Primavera, com o ritmado canto
dos cucos, bem diferente daquele outro som que deles parece saído pelo nariz
humano e o assobio, quando se exibem e namoram as fêmeas.
Mas era o cantar do verdelhão, saltitando nos jardins à cata de deliciosas
sementes, ou roubando descaradamente as já plantadas no viveiro, mesmo ali na
presença do pai jardineiro, que mais o encantava. Romeu exultava com a
observação das aves e surpreendia quem o escutava, imitando-as com tal
semelhança, que mal se distinguiam as diferenças. E a fama das faculdades do
rapaz logo se espalhou pelas redondezas.
Cravo Roxo, rendido às raras qualidades do rebento e dada a escassez de
fundos, que desde sempre ensombrou a vida do lar, deitou-se a magicar numa forma
de tirar rendimentos das qualidades do benjamim. Não faltavam por aí romarias e
festas, e serões de variedades pelas aldeias da redondeza. Ele até tinha jeito
para imitar as pantominices dos artistas. O rapaz bem que podia animar essa
gente, a troco de umas moedas. Pois se imitava os instrumentos das bandas, os
animais e sobretudo os pássaros, não havia também por certo de deliciar quem o
ouvisse exibir aquela maravilha de voz que Deus lhe dera?!
E disse-lho, num serão, ao jantar. O rapaz que não, que não queria andar
por aí a fazer essas figuras de imitar a bicharada à frente do público. Lá na
terra, para os amigos e para a família era uma coisa, agora andar de
saltimbanco a fazer imitações… Havia de se envergonhar, por certo. Que não. Mas
o pai insistia e acabou levando a melhor.
No Verão, mas despontava a época das festas, lá ia o pobre, aos domingos,
como burro por arreata, atrás do Cravo Roxo, de arraial em arraial,
satisfazendo os pedidos mais surpreendentes dos espectadores. “Ó catraio,
imita aí a minha Laurinda, quando está com prisão de ventre!”,
alanzoava-lhe certo dia um idiota, de garrafa na mão, com a baba a correr-lhe
pelos cantos da boca e prestes a cair-lhe aos pés, quando se tentava empoleirar
à beira do rústico estrado onde a festa decorria.
Não, não iria mais, nem que o pai o enchesse de porrada. Cravo Roxo
compreendeu. Também a ele aquela vida não agradava, mas as gorjetas que iam
arrecadando eram uma preciosa ajuda, lá isso eram. Não insistiu mais. Amava o
filho, como amava a Catarina e os restantes rebentos e não queria que essa
harmonia se quebrasse, fosse por que motivo fosse. Continuariam pobres, mas nem
por sombras deixariam de disfrutar daquela pequena parcela de felicidade que o
amor da família proporciona. E o rapaz passou a dedicar-se aos pequenos
biscates, recados de vizinhos, que lhe pediam para ir às compras, ou levar
pequenas coisas a outros locais da vila.
Mais Romeu não arriscava, que o danado daquele pulmão, “que não prestava
para nada”, não lhe consentir uma vida como a das outras pessoas. No Verão,
quando a cerveja começa a escorrer pelas gargantas, era vê-lo, manhã cedo, a
sair para os campos de mato, de sacola ao ombros, à cata dos caracóis, que o
Vítor e o Razões - “capelas” ali postadas cara a cara, apenas com a estrada a
separá-las – lhe compravam.
Havia outros, lá mais para o centro, como o Grandela e o Sepodes, que lhe
encomendavam igualmente caracoletas, para os deliciosos guisados, cuja fama
ganhara asas. Até os cafés já lhe pediam caracóis, que a moda tinha, também por
ali, pegado de estaca. Deixava-os, aos quilos, no Melro, no Águia de Ouro e no
Portugal e já não tinha mãos a medir, que as forças não davam para grandes
feitos. No que lhe restava de tempo, rendido à sua irresistível predilecção,
Romeu continuava a acompanhar o pai, aprendendo com ele os cativantes segredos
da jardinagem.
Gostava dos espaços à beira do Almonda, quando a várzea se alonga, sempre
no fascínio pelos animais, mamíferos ou pássaros, ou navegando o rio, na
rudimentar canoa que o pai lhe construíra, muita vez correndo com a garotada
que montava armadilhas às aves que por ali nidificavam. Navegava à vara, abaixo
e acima, até ao moinho dos Gafos, ao fundo do Arco de Santo André, junto ao
matadouro ou, mais além, às imediações do outro engenho de cereais, o moinho da
Cova onde, desde bem cedo, se juntava aos outros garotos, nas tardes de Verão,
nadando e pescando, naqueles descuidados dias de crescer e respirar os aromas
da vida.
Era agora um esbelto moço, a rondar os dezassete anos, sem horizontes nem esperanças
de futuro. Alguma coisa tinha de mudar, que Romeu, embora da saúde débil, não
era um inválido, a quem se estende a mão por caridade. E um dia partiu,
libertando-se com dificuldade e nós na garganta, da mãe que não augurava nada
de bom com aquela partida do seu menino mais novo. E tão pouco saudável,
valesse-lhe Deus. Cravo Roxo não se opôs. Ia sofrer-lhe a ausência, mas ele,
embora fraco de forças, era um moço expedito e inteligente e havia de arranjar
alguma coisa. “Vais ver, Catarina, ainda um dia te hás-de orgulhar dele”,
consolava a esposa.
Por aí, em busca de um lugar onde assentar arraiais e uma ocupação que lhe
garantisse o pão, Romeu tentava em Câmaras, casas ricas e instituições, um
serviço de jardineiro, até de ajudante, que os anos junto do pai lhe deram a
experiência necessária para o desempenho de tal tarefa. Mas não, não havia
vagas, tinham muita pena mas teria de procurar noutro lugar. Aqui e além ia
desempenhando pequenas tarefas, a troco de alimentação e algumas moedas. Nada,
porém, que lhe garantisse a estabilidade que o futuro lhe exigia.
Restava-lhe o fascínio pelo mundo do espectáculo, que lhe ficara de
criança, mas que poderia ele fazer nesse mundo dos artistas, se não sabia mais
de que imitar instrumentos e pássaros?! Ainda assim porfiava. Era o tempo da
feira anual na vila beirã, onde Romeu ocasionalmente se encontrava.
Apressava-se a montagem das barracas e dos divertimentos e o jovem deambulava
pelo recinto, mirando, mirando.
Deteve-se junto à barraca dos tiros, já quando o velho proprietário
terminava a colocação dos bonecos de plástico e os peluches, que os clientes de
melhor pontaria levariam como prémio. “Precisa de ajuda, tiozinho?”,
inquiriu, junto do idoso que se sentara, de lenço na mão, limpando as bagas de
suor que lhe nasciam no rosto. “Preciso é de alguém que me fique ao balcão
da barraca e me tome conta do serviço, que as minhas pernas já não estão muito
pelos ajustes”. Romeu Cravo Roxo, assim sem mais delongas, acabava de
conseguir o seu primeiro verdadeiro emprego.
Prendeu-se pela barraca dos tiros por pouco tempo. Não era aquilo que o
cativava. Tentou depois, a meias com outro amigo das feiras, uma tenda de venda
de algodão doce e farturas, mas o negócio pouco dava. Na região, farturas
afamadas eram as do Pina – por sinal seu conterrâneo – e era para a rulote do
Pina que a clientela corria. E depois embatucava, sempre que a si próprio o
reconhecia: tinha umas saudades danadas dos pais e dos irmãos.
E também da encosta onde crescera, e do rio e do viveiro, cercado a muro
alto, para que as cheias e os intrusos o não invadissem. Romeu - descobriu-o,
ao longo daquele tempo em que andou por lá - não era homem para aquela vida de
cigano. Estava muito ligado às raízes, como as plantas e as flores que o pai
carinhosamente cultivava. E a mãe, a doce Catarina de quem tinha mais saudades,
havia por certo de estar a sofrer a sua ausência, de uma dor mais forte do que
a dos outros. Se calhar do que a dele próprio. Aquilo de andar por esse mundo
de Cristo não era vida para um homem daquela têmpera.
Esquecido o sonho dos palcos, esconjuradas as mazelas com que a vida
errante lhe marcara a existência, Romeu meteu um dia os parcos haveres numa
coçada mala de mão e fez-se ao caminho, de volta a casa. “Ao
largo, que a moléstia pega-se!”, murmurava a si próprio, com a convicção de
que fugia de algo sem futuro e sem os estímulos de vida, como a que ele
percorrera na infância. Queria voltar ao seu mundo, à sua gente e ao conforto
daquela várzea, que se estendia até à Ponte Nova, para lá dos limites do seu
reduto.
Voltara a ajudar o pai no que podia e pensava no dia em que por certo o
substituiria, mal o já cansado Cravo Roxo se reformasse. Sabia o suficiente dos
segredos das plantas e das flores para, de cara levantada, pedir à Câmara o
lugar do seu velho mestre jardineiro. Uma vez por outra, lá ia ao centro da
vila, à loja das flores comprar sementes, por mando do pai, ou levar ao senhor
Inácio proprietário da loja, “para amostra” e um pouco pela surra,
uma ou outra flor cruzada, das muitas que Cravo Roxo fazia nascer no “seu
viveiro”. Deliciava-se o homem, criando novas cores e matizes, nas suas flores,
as quais exibia, com o peito inchado de orgulho, nos jardins municipais, como
se fosse um pintor a expor os quadros em exposições de pintura.
Um dia Romeu demandou, como habitualmente, a lojinha, com mais uma lista de
sementes para aviar. Ao balcão, sorridente, apresentou-se uma esbelta, fresca e
viçosa jovem, que o atendeu com o sorriso mais suave e luminoso – santos do
céu! – que nem as senhoras dos altares da igreja de Santiago. Nesse dia,
cuidadosamente envoltos em jornal, levava o jovem a nova “menina dos olhos” do
pai, para o senhor Inácio apreciar: um punhado de amores-perfeitos, tão
maravilhosamente coloridos como se um arco-íris ali tivesse espargido as suas
tintas. A jovem recebeu-os, olhou Romeu no mais profundo dos olhos e, abrindo
um sorriso de sol a pique, balbuciou-lhe: “Quem dera que os amores-perfeitos
se vendessem assim aos braçados, em pacotes de jornal.”
“Quer saber o meu nome? Sou Madalena”, disse, em resposta à
pergunta meio desajeitada do rapaz. Romeu não sabia onde havia de meter as
mãos, nem os olhos, nem o pobre coração, que ameaçava saltar-lhe do peito.
Entre breves gaguejos, conseguiu, a meia voz, retorquir: “Que pena não se
chamar Julieta. Eu chamo-me Romeu, sabe?” E depois, por uma infinidade
de tempo, que nenhum dos dois soube contar, ficaram ali numa conversa recheada
de trivialidades, à descoberta de coisas que nem eles próprios saberiam muito
bem o que seriam.
No dia seguinte Romeu voltou à loja. Trazia mais flores, agora não para o
senhor Inácio, mas para ela, “de quem as flores da loja haviam certamente de
ter ciúmes”, lançou-lhe o atrevido. E voltava para casa, de alma cheia e de
janelas abertas no peito, vislumbrando algo mais sublime, mais doce e mais
forte, do que as, agora tão aguardadas, idas em busca de sementes.
E nos dias que se seguiram, e nos outros que depois vieram, lá ia,
prazenteiro, de fatinho bem-posto, flor na lapela, cabelo luzente de
brilhantina e coração mais ofegante do que um corcel num final de galope.
Romeu, sem sombra de dúvida, subira ao céu e por lá esvoaçava, de alma cheia,
chilreando como as aves que tão bem sabia imitar. O rapaz, irremediável, embora
secretamente, apaixonado, debatia-se com uma dolorosa falta de coragem. Porém,
Madalena sabia. Soube-o, também ela, desde o primeiro momento e ria-se a sós,
recordando as vezes que dizia às amigas confidentes que jamais acreditaria
naquela coisa ridícula do amor à primeira vista. Podia lá acontecer uma coisa
dessas?!
Não tardou que as visitas à loja se transformassem num compromisso sério
entre os jovens. Amavam-se, confessavam-no mutuamente, com desusada frequência
e queriam já que esse forte sentimento que os juntara fortalecesse e desse
passos definitivos e sólidos. Ambos viviam agora cativos do mundo mágico das
flores. Seria por aí o seu futuro. Romeu arrendou uns palmos de terra junto ao
Moinho da Cova, num pequeno baldio à beira do areal, onde em menino brincava.
Ia criar o seu próprio viveiro de flores, abririam uma loja na zona nova da
vila, que então começava a crescer para os lados das Tufeiras.
Próximo do aquartelamento militar e das Casas Altas, alugaram uma casinha
de piso térreo, onde iriam viver após a boda. Ficava perto do viveiro – era só
descer um pouco, que o rio era logo ali – e ficava, por assim dizer, ainda no
meio da vila. No dia do casório, Cravo Roxo, de braço curvo, no qual, tão
trémula, se apoiava a mão da esposa, dizia-lhe, ao ouvido, rasgando um sorriso
onde cabia a lua cheia: “Eu não te disse que o rapaz ainda nos havia de dar
alegrias? Eu não te garanti que ainda te orgulharias dele?”
Pois dissera. Catarina conhecia bem o filho que trouxera no ventre, que a
inundara de lágrimas, quando quase lhe morreu, naquele maldito dia no alto da
colina e sabia que o seu menino – Romeu seria sempre o seu menino – merecia a
felicidade que ela própria tivera, mesmo suportando as arremetidas da sorte, os
sacrifícios e as agruras de uma vida de dores e privações. E
depois, aquele Deus que lá do céu olha por nós, bem sabia que o seu menino
nascera com a missão de levar também a felicidade aos que dele se acercavam e
com aquele tão maravilhoso dom de imitar os animais, que a vida lhe ensinara a
amar também, como filhos da criação.
Bem vistas as coisas, Romeu Cravo Roxo sabia que alguém, algures, se
ocupara do seu destino e da sua felicidade. Tanto assim, que o tocara ao nascer
com a varinha de condão das fadas madrinhas e lhe concedera, com essa bênção, o
mais belo dos privilégios: ensiná-lo a falar com os pássaros, como se eles
fossem também capazes de, com a harmonia do canto, entender a suprema maravilha
do universo.
Depois da doce voz da sua Madalena, havia lá coisa mais linda de ouvir, ao
acordar, do que um trinado de ave madrugadora, lançado ao vento e pelo vento
levado até aos confins do coração dos homens.
António Lúcio Vieira
2015
1 comentário:
Grande escritor e grande poeta. Foi uma pena ter partido tão cedo. Que descanse em paz.
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