Um poema inédito do saudoso António Lúcio Vieira, de 13 de Setembro de 2016, que nos foi enviado pelo nosso camarada Carlos Pinheiro:
"Há dias em que saio para a vida com uma necessidade enorme de semear poemas.
Peço desculpa pelo incómodo”.
SINA
Visto daqui parece uma visão por entre brumas
bate-lhe o sol na espuma da proa
e a luz salpica no ar, crepita e cintila.
Há gente no cais acenando braços e lenços
como que a dizer-lhe que é ali o lar.
Sobe o sol no espaço e ateia o dia.
Prenhes de vento as velas arrastam navegantes
ávidos de cais cansados de náuseas e tédios.
Lá vem, já lá vem.
Nas pedras musgosas do molhe vem o mar e volta
na amurada assomam olhares e rasgam-se os risos
e as vozes que chegam dos nautas perfilados nas vergas
trazem com o vento a solidão dos dias como se fossem almas
salgadas por todos os mares em todas as viagens.
A brisa da manhã lança ao cais um odor marinho
que o casco guardou dos outros mares e de outras memórias.
Lê-se ali o livro breve de tantos segredos
tantos cais de aportar e tantas tantas as procelas.
Nas velas nos mastros e quilhas escreveu-se o mural da epopeia.
Cada baía era uma alcova cada cais foi um lar de alentos
cada oceano uma estrada de galgar distâncias
um adamastor de gelar os corações e as veias.
Na longa travessia dos sentidos a voz dos mares dorme nos porões.
O navio atracou mas já sonha partir. Partir.
Soltar amarras e voltar aos mistérios às tormentas e aos medos.
Ao mar.
Curtir o corpo na aventura da viagem desde há muito destinada.
Ao mar que nele se fizeram os homens desta terra
que por ele se abriu o mundo à passagem de flâmulas e ouros;
do mar onde nasceram as vozes cantadas da saudade. Fados.
Ao mar que as águas em volúpia já se roçam pela quilha.
Ao mar. Nasceu-nos no berço este fadário de enfrentar tormentas
entre tantos cais de sarar refregas.
Quantos mais cabos a sul ainda para dobrar.
Quantas Calecutes ainda por destino. Quanto naufrágio anunciado.
No cais os lenços voltarão. E voltarão. As âncoras já sobem.
Soltam-se as amarras. Soam as sinetas. Ao mar.
Corre-nos nas veias um sangue salgado. E uma espuma nos olhos
e há um sopro de maresia nas vozes que murmuram: espera por mim.
Rasga-se o destino na proa do navio.
E vai um povo inteiro ali silente com a marinhagem.
Nos porões que hão-de voltar inchados de futuro.
Sina diz o povo ser o nome desta saga que se teme não ter fim.
António Lúcio Vieira
2 comentários:
Maravilhoso poema sobre a epopeia dos descobrimentos portugueses.
Grande poeta o C. Lúcio. Descanse em paz.
M Arminda
Perdão quero dizer António Lúcio.
M Arminda
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