Enviado pelo nosso camarada Manuel Frazão Vieira:
“A minha singela homenagem ao nosso companheiro António Lúcio Vieira, de
Torres Novas, que tão cedo nos deixou.
Foi poeta,
dramaturgo, argumentista, investigador e jornalista.
Dos muitos
poemas que escreveu, permitam-me apresentar o Lúcio como um poeta maior. Um
poeta sem "os privilégios dos arautos ou arengadas penaches".
De tantos que
me ofereceu e li, destaco:
ANDA, VAMOS AO
PASSADO
Anda, dá-me a tua mão. Vamos recordar.
Soltemos o olhar sobre os
campos da nossa infância
quando o meu avô domava a
terra e eu, alheio, o seguia
e sabia que me esperavas
ao chegar do Peral.
Anda, olha, ali é o
cabeço das mil aventuras. O mágico Lavradio
onde sonhávamos heróis e
olhávamos o futuro inda tão longe.
Tu apenas tão ausente e
eu sem saber que existe um futuro.
Que esse mistério do
futuro não se vislumbra assim tão longe.
Como catedral,
constrói-se pedra a pedra, ânsia a ânsia.
Só os dias, neste
percorrer quotidiano sem regresso,
se adivinham com certeza
e exatidão.
Vamos, anda. Olha ali a
escola, a minha matriz, no cume do outeiro;
o pejo da bata, sacola e
calção e aquele apelo feiticeiro
do deus das palavras que
me abriam mundos e me levavam
já então me levavam ao
mundo de outros mundos.
Além, um pouco abaixo,
janelas viradas à Arrangela, era a tua escola.
As meninas de batinha
branca e lacinho cor-de-rosa no cabelo.
Lembro-me, calçavas
soquetes de garridas cores e rias
rias de nós quando
passavas e os nossos olhos
rendidos, seguiam os teus
passos.
Anda, dá-me a tua mão.
Não te percas agora nesta
romagem ao rio já navegado.
Em silêncio. É melhor
olharmos em silêncio e escutar a música do tempo.
Sabes, ainda voga em mim
um tenaz desassossego
um anseio de galgar o
espanto desses dias
e nem tu sabias que
aqueles meus silêncios me vinham do apelo
trazidos pelos ventos da
serra, vindo das Sílfides
aquelas deusas que nos
chamam longe e nos querem perto.
E eu fui.
Não deixes a minha mão.
Só agora lhe sinto o benigno calor
da sã fraternidade dos
teus gestos e tanto, tanto dos teus passos.
Íamos ao rio: ainda te
lembras. Na Ascensão lanchávamos na relva.
E havia aquelas grutas de
mistério onde o rio nasce
e eu tão senhor de mim,
leviano, me afoitava.
Agora ris. Não, espera,
não deixes já a minha mão.
Depois de tanto palmilhar
as sete partidas agora estou aqui.
E é quase um bálsamo
sentir esse morno calor da tua mão na minha.
Vim para te ver. Mudaste.
São apenas os meus olhos que o dizem.
No resto, no silêncio,
ainda és sempre tu
quando me esperavas ao
voltar das aulas na carreira da tarde.
Acho que andarilhei uma
eternidade. Deixá-lo.
Neste quase silêncio das
nossas palavras recordo amores passados
lavo-me das paixões, dos
ódios e das mil utopias não cumpridas.
Cumpro agora a promessa
que te fiz nesse tão longe:
Um dia, menina-irmã,
voltarei, para viajarmos
de mãos dadas ao passado
destas acanhadas ruas
onde, como irmãos,
crescemos sem dar conta
e aos recantos das
memórias onde os nossos dias nos amaduraram.
Agora já posso olhar-te e
dar-te a mão.
Como um rio os passos
nunca voltam ao princípio.
Não desesperes, minha
irmã de infâncias e de sonhos:
Algures há uma foz onde o nosso mar nos aguarda roído de saudades.
(in António Lúcio Vieira, "25 POEMAS DE DORES E AMORES")”
1 comentário:
Linda poesia.
Que o nosso amigo Lúcio se encontre em paz.
Obrigada Miguel.
Um abraço.
Mª Arminda
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