O MEU EMBARQUE PARA A GUINÉ
23.10.68 – 23.10.2022
Tudo começou muito antes.
A Inspecção Militar a que todos os mancebos eram sujeitos era o
princípio da vida militar e era feita na sede do concelho de residência dos
referidos, no ano em que se faziam vinte anos. Eu, porque tinha nascido e
morado sempre em Alcanena, foi na minha terra que fui inspeccionado juntamente
com os outros quarenta e nove. Logo de manhã fomos para o Salão Nobre do
edifício da Câmara Municipal, portas fechadas e janelas corridas, mandaram-nos
despir e deram-nos um papel onde um soldado apontou o nosso peso e a nossa
altura. Todos nus, com um papel na mão.
No Gabinete do Presidente da Câmara estavam os médicos militares que
nos inspeccionavam, um a um, muito à pressa e lá nos
davam a notícia que estávamos “apurados” para todo o serviço militar. É certo
que um ficou “esperado”, porque era baixo e gordo e outros dois ficaram
“livres” sem se saber porquê.
Quando nos íamos vestindo, o tal soldado que nos tinha pesado e medido
vendia-nos uma fita verde e vermelha, com um alfinete, para colocarmos na
lapela do casaco, a dizer que estávamos apurados. Os que ficavam livres, tinham
direito a uma fita branca.
Nesse dia, apesar de tudo foi dia de festa. Houve jantarada do grupo e
depois baile até de madrugada. Era assim.
Depois foi só aguardar que os editais nos chamassem para a vida militar. A
minha sorte mandou-me para a Escola Prática de Cavalaria em Santarém, no dia 10
de Outubro de 1967. Era uma segunda-feira e tudo era novo para aqueles
trezentos e sessenta recrutas do Curso de Sargentos Milicianos. A maioria, onde
eu estava incluído, só entrou depois do almoço e depois de ter sido dado mais
um toque no cabelo, e lá entrámos. Logo de seguida fomos receber o fardamento,
deram-nos um número – eu era o 2060/67 – indicaram-nos a caserna e o nosso
número lá estava numa cama. Nada de enganar.
Aprendemos, assim, a formar para o jantar. O refeitório era do outro lado
da parada, no primeiro andar. E lá jantámos tendo-nos sido dito que às nove
horas tínhamos uma palestra no mesmo refeitório para aprendermos o que era a
tropa. Claro que ninguém faltou. Todos presentes para aprender onde estávamos
metidos. O porta-voz foi o Comandante do meu Esquadrão, o Tenente Sentieiro que
em palavras simples nos elucidou perfeitamente onde estávamos e o que o futuro
nos reservava.
Dessa palestra há passagens que ficaram na memória e que hoje aqui merecem
ser recordadas. Por exemplo: “Essa coisa onde estão a deitar a cinza
dos cigarros e as beatas, agora é um cinzeiro, mas amanhã de manhã é uma
chávena de vista alegre para beberem o café com leite e à hora do almoço é um
copo de cristal por onde vão beber o vinho ou a água”. Afinal aquilo era só
um púcaro de alumínio…
Outra dessa noite com alguma piada, mas sem graça nenhuma, foi quando o
orador nos disse que só poderíamos sair para a rua quando soubéssemos todos os
postos da hierarquia militar e bem assim os que mereciam ser cumprimentados militarmente
– com continência – para evitar que fossemos bater pala ao porteiro do Hotel
Abidis que tinha uma farda que parecia um marechal. E assim foi.
No outro dia foi o princípio. Aprendemos a marchar, aprendemos a rebolar
nas barreiras, a saltar ao galho, a fazer a ponte interrompida, saltar a vala,
rastejar, subir ao pórtico e lá fazermos alguma manobras, saltar das camionetas
a não sei quantos à hora, devidamente enrolados, e sempre a marchar.
As barreiras, antes da recruta acabar, foram proibidas. Não por causa de
alguns braços partidos e outros pequenos ferimentos, mas porque as fardas
estavam a desfazer-se.
O tiro era treinado, de dia e de noite, na Carreira de Tiro fora do quartel
com todo o tipo de arma desde a pistola até às várias metralhadoras pesadas.
As instruções nocturnas eram normalmente às terças e quintas-feiras e
duravam até depois da uma da manhã, quando não era até mais tarde. Íamos para
as Ómnias, lá para as margens do Tejo, para o Monte do Zé Morto, para o caminho
de Rio Maior e na semana de campo fomos para lá da Chamusca, sempre a pé e com
a carga toda às costas, incluindo a Mauser e o Capacete na cabeça. Nessa semana
nem uma tenda pôde ser montada, apesar de irmos carregados com todos os
apetrechos. Parece que o “inimigo” estaria ali por perto. Ordens são ordens.
Esta semana de campo foi depois da tragédia das cheias, inundações e morte de
centenas de pessoas na zona de Vila Franca, Alenquer, Loures e Odivelas. Só
para nos centrarmos no tempo.
Depois de tudo isto, lá chegou o dia do Juramento de Bandeira e logo a
seguir ficámos a saber que a maioria do pessoal, daqueles dois Esquadrões de
Instrução, tinha chumbado e passado para o Contingente Geral. Dos trezentos e
sessenta, foram só duzentos e um que chumbaram. E mais tarde, já na Guiné, é
que vim a saber de fonte segura a razão de tanto chumbo. Foi o Comandante
daquele Grupo de Esquadrões de Santarém, que também estava na Guiné e,
infelizmente, lá morreu no acidente do helicóptero que caiu e onde iam também
alguns Deputados da Assembleia Nacional que estavam de visita à Guiné que
morreram também, que me disse que tinha havido um erro na classificação das
pautas de tiro, que dependiam da Direcção da Arma de Infantaria a quem podiam
pedir a revisão das mesmas. Mas como éramos de Cavalaria, ficou assim.
Não vale a pena continuar a falar, agora da especialidade, nem do resto do
tempo até ao embarque. Mas passei pelo RTM no Porto onde tirei a especialidade,
fui depois para o BT, na Graça, em Lisboa, a seguir para o QG em Tomar, depois
de mobilizado voltei ao BT, e logo de seguida fui para o 15 em Tomar, que foi a
minha Unidade Mobilizadora e na véspera do embarque fui passar a noite aquele
hotel estrelado que era o Depósito Geral de Adidos.
É verdade. Parece que foi ontem e já lá vão CINQUENTA anos desde o dia do
embarque para a Guiné, mas está tudo bem guardado na memória.
Depois de uma noite muito mal dormida nos Adidos, na Calçada da Ajuda, logo
de manhã lá estava ataviado a preceito para embarcar para a guerra.
Dois dias antes, ainda no RI 15 em Tomar, a minha Unidade Mobilizadora,
soube que ia para o BCaç 1911 - que nunca vi e que parece que veio no barco
onde fui. Apanhei uma boleia com um senhor da minha terra que lá foi buscar o
filho, para também embarcar para a guerra, salvo erro era para Angola. Lá fomos
os três no Volkswagen 1300 do senhor, a caminho dos Adidos em Lisboa.
Almoçámos, já não me lembro onde, e lá chegámos à capital do Império e aos
Adidos.
Entrámos os dois pela porta de armas, cada um foi para o seu sítio, mas no
dia seguinte deixei de o ver. Afinal acabou por ficar cá - não chegou a
embarcar. Tinha as suas mazelas certamente.
No dia do embarque, no dia 23 de Outubro de 1968, como disse, logo de manhã lá
estava fardado como deve ser, de saco às costas com os meus pertences. Foi só
esperar que as camionetas começassem a chegar para levar toda aquela malta de
rendição individual para o cais de Alcântara. Éramos cerca de sessenta, tudo de
cabeça baixa, sem saber para onde íamos.
Quando chegámos ao Cais o grosso dos expedicionários já estava devidamente
formado; era o Batalhão de Caçadores 2856, também do RI 15 de Tomar,
constituído por quatro Companhias, mais um Pelotão de Polícia Militar que ia
para Cabo Verde e ainda outras Unidade mais pequenas, género Pelotões de Canhão
Sem Recuo, Pelotões de Apoio Directo, etc.
Nós ficámos livres da formatura e, certamente por isso, fomos dos primeiros
a embarcar. Ao cimo das escadas lá estavam as senhoras do MNF – Movimento
Nacional Feminino - a darem um maço de cigarros "Porto", um isqueiro
e uns aerogramas a cada um. Também por lá se viam uns senhores de chapéu e de
sobretudo, que alguns mais vividos diziam serem da PIDE.
O Uíge atracado à espera, com a tropa formada, depois de um
General ter passado revista às forças ao som de uma Banda Militar, depois dos
discursos da ordem, lá começaram a embarcar, sempre com a Banda a tocar marchas
militares.
Os nossos familiares estavam do outro lado das barreiras e muitos nas
varandas da Gare, com os lenços brancos nas mãos e as lágrimas nos olhos.
Os lenços brancos a acenar eram mais do que muitos. Da minha parte lá
estavam os meus pais e os meus tios que moravam em Lisboa. Sabia mais ou menos
onde eles estavam posicionados porque tínhamos combinado antecipadamente. A
amurada do barco do lado do Cais estava repleta de militares o que provocava um
relativo adornar do navio.
Entretanto, cerca do meio-dia, as máquinas do navio começam a fazer mais
barulho e a silvar. Vêem-se já os rebocadores que o há-de ajudar a largar e a
ganhar o rumo da Barra do Tejo. Foram momentos difíceis de descrever.
Adivinhávamos facilmente que os familiares no Cais choravam. Alguns até
gritavam e ouvia-se bem apesar da distância ser cada vez maior. Mas
ouvia-se.
Navio Uíge em Bissau / Foto: Torcato Mendonça
A bordo também havia lágrimas em muitos olhos. O barco ganha rumo, a ponte
"Salazar", era assim que se chamava a que hoje se chama "25 de
Abril", começa a ficar cada vez mais perto, até que passámos por baixo
dela. Dali até à Barra e depois ao mar alto parece que foi um momento.
Mal ou bem lá fomos encaminhados para os nossos aposentos, para largarmos o
nosso saco e para tomarmos conhecimento dos nossos beliches. A esmagadora
maioria - onde eu estava incluído - viajou nos porões, que noutras viagens
transportavam tudo e mais alguma coisa. O cheiro era horroroso. As camas eram
mesmo tipo beliche, mas em madeira de pinho, com colchões de palha e uma manta
da tropa em cima. A estrutura das mesmas, porque em madeira, estava já cheia de
dedicatórias de toda a ordem que se possa imaginar, fruto de outras viagens de
idas e de regressos.
Já no mar alto fomos para a primeira refeição, o almoço, numa sala grande,
a sala de jantar do barco, e a comida era aquela que nos quiseram dar, porque
os orçamentos naquela altura já eram apertados, mas ninguém se queixou…
Depois foram cinco dias a ver-se só mar e céu, tudo azul, e de vez em
quando uns peixes voadores a acompanhar o Uíge, e por vezes até
golfinhos como que a desejarem-nos boa viagem. Raras vezes avistámos outros
barcos, mas sempre ao longe. Passámos relativamente perto das Canárias.
Disseram-nos que, como aquilo era um Transporte de Tropas, estávamos a ser a
ser acompanhados por um submarino. Já era a psicossocial a funcionar.
No convés havia uma espécie de um bar onde se vendia cerveja e Coca-Cola, sendo
esta uma novidade autêntica uma vez que na Metrópole a mesma ainda era
proibida. A cerveja era holandesa. Eram garrafas de meio litro, verdes, que nós
nunca tínhamos visto. Claro que com estes estimulantes a viagem e o tempo
parece que custavam muito menos a passar.
Nos porões, logo no primeiro dia, foram montadas bancas para a batota,
neste caso a lerpa, e os profissionais dessa jogatina lá assentaram arraiais e
foram depenando os mais desprevenidos, que eram a esmagadora maioria.
E assim chegámos a Bissau no dia 28, ao final do dia, tendo o barco ficado
ao largo e o pessoal desembarcado para barcaças que de imediato tinham rodeado
o navio por todos os lados.
A todos os companheiros, camaradas e amigos que vão sobrevivendo e que há
54 anos viajaram comigo no Uíge, um grande abraço e votos de muita
saúde.
Carlos Pinheiro
23 de Outubro de 2022
2 comentários:
Olá Carlos
Sem prejuízo de poder comentar um pouco mais depois, sempre te digo que 1 ano e 2 dias depois, ou seja em 26 de Outubro de 1970, tenho a minha data "oficial" de partida para a Guiné.
Uma "quase" coincidência.
Mas essa minha partida, realmente efetuada no 3 de Novembro seguinte, bem como a viagem em si mesma, já foram relatadas, pelo que não me vou alongar.
Sobre as tuas peripécias verei depois.
Abraço
Hélder Sousa
Correção.....
Não foi 1 ano e 3 dias, foram 2 anos e 3 dias!
As minhas desculpas.
Hélder Sousa
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