segunda-feira, 19 de setembro de 2022

P1341: LEMBRANDO O VELHO SISTEMA DE ENSINO...

                            AS VIRTUDES DO ENSINO

           EM TEMPOS REMOTOS

Há sempre uma necessidade reclamada por amigos para que se possa contribuir com textos tendo em vista alimentar as suas publicações. Nem sempre ocorre inspiração para recorrer à memória a fim de materializar recordações. Desta vez, depois de algum vazio mental, lembrei-me, já nem sei porquê, de um episódio, melhor dizendo, de uma sequência de episódios, que originaram situações que potenciaram consequências.

E por isso atrevo-me a pedir que depois de lerem, se lerem, me ajudem com as vossas opiniões, sobre que lições se podem tirar (se é que se podem tirar algumas) do conjunto das situações.

1.    - Vamos aos factos.

Depois de ter feito o Curso de Montador-Electricista (era assim que se designava) na Escola Industrial e Comercial de Vila Franca de Xira, terminado em 1964, fui para Lisboa, cidade grande, fazer as chamadas Secções Preparatórias para o possível ingresso no Instituto Industrial. Essa fase intermédia ocorreu na Escola Industrial Machado de Castro, nos anos letivos de 1964/65 e 1965/66. Os exames de admissão decorreram com aproveitamento e deste modo entrei no Instituto Industrial de Lisboa para o Curso de Eletrotecnia e Máquinas em Outubro de 1966.

2.    – Enquadramento social

Dois pequenos apontamentos para ajudar a complementar as situações e a focalizar as “cenas” na época.

Um desses apontamentos é para lembrar que o Ensino estava elitizado. Havia a via liceal e a via do chamado “ensino técnico”. Aos “liceais” estava aberta a via para a Universidade, nas suas várias vertentes, com os seus “cursos superiores”, enquanto que para os do “ensino técnico” era privilegiada a “via profissional”, ou seja, a entrada no mercado de trabalho para exercer uma profissão ou então, através dos “Institutos”, para almejar alcançar uma situação que seria sempre reconhecida como “cursos médios”.

Ao nível do ensino da engenharia isso traduzia-se a que as duas vertentes, a “universitária” e a “média” se materializavam no Instituto Superior Técnico (e Faculdades de Engenharia) e nos Institutos Industriais, sedo que essa separação elitizada projetava-se na Instituição Militar com os primeiros a integrar os Cursos de Oficiais Milicianos (o COM) e os outros os Cursos de Sargentos Milicianos (o CSM).

Outro pequeno apontamento é que pelos anos acima indicados, talvez ainda se lembrem, pois já são anos “do século passado”, havia um esforço de guerra governamental em terras africanas para defender da cobiça internacional aquelas terras e aquelas gentes que nos tinham sido legadas pelas gestas dos descobrimentos e que os nossos “antanhos” tinham desbravado e defendido para nós, “numa mão a Cruz, noutra a Espada”.

Para esse esforço foram mobilizados milhares de jovens. Aos que na época eram estudantes, era facultada a possibilidade de adiamento da incorporação nas Forças Armadas através de pedidos nesse sentido, com base no desenvolvimento dos estudos.

Aos jovens que frequentavam o Instituto Industrial, que para lá chegarem tinham tido, para além da 4ª Classe de escolaridade, 5 anos de Ensino Técnico e depois 2 anos das Secções Preparatórias, num total de 7 anos, mas que não tinham “equivalência funcional” aos 7 anos do Ensino Liceal, era também concedida a possibilidade de “pedido de adiamento” mas, para tal, o “aproveitamento escolar” deveria ser irrepreensível.  Havia umas quantas “cadeiras” que davam precedência a outras do ano seguinte e cuja falta implicava não se poder avançar e, consequentemente, ao nível do “aproveitamento” era considerado insuficiente para o fim pretendido.

3.    - Continuando então com os factos.

Este jovem que vos escreve, que até então tinha sido um aluno de razoável mérito, “distraiu-se” um pouco no meio da “cidade grande” e das suas solicitações, embora diariamente fizesse as viagens de comboio entre a casa familiar e a Escola. Como resultado disso, as notas da maior parte das disciplinas da 1ª Frequência desse ano letivo de 1966/67 foram o que se pode chamar “um desastre”. Após isso, e reganhando vontade, atirou-se a tentar recuperar o possível e aconselhado por um Professor de uma das cadeiras fulcrais, a Física, deixou-a “cair” para ter possibilidade e capacidade para outras. Assim fiz.

Não passei de ano na totalidade, pois algumas cadeiras ficaram para trás, mas como ainda não tinha chegado a idade da incorporação militar não houve consequências imediatas. Entrei então no meu segundo ano de presença no Instituto, ano letivo de 1967/68, embora a frequentar novamente cadeiras do 1º ano e, salvo erro, apenas duas já do 2º ano, as que não necessitavam de precedência e tinha tido aproveitamento.

Esse ano correu bem.

4.    – A situação “estranha”.

No ano seguinte, ano letivo de 1968/69, em que já tinha ido “às sortes” em Agosto 8e aprovado para todo o serviço), as coisas “complicaram-se” a partir de um acontecimento insólito. A cadeira de Matemática II tinha um professor na “teórica”, de nome “Vítor qualquer coisa”, mas por lá conhecido na gíria por “papá” já que tínhamos a “mamã”, esposa dele, a dar a “prática”. Diga-se então, em abono da verdade, que funcionava assim como uma “disciplina familiar”…

A “mamã” era uma pessoa de baixa estatura que contrastava fortemente com a altura física do “papá”, o que por vezes era motivo de piadinhas, mas o mais agravante era o facto de a senhora dar aulas a crianças do preparatório e algumas vezes não se dava conta de estar a leccionar no Instituto a “pessoas crescidas” e com recorrência, para chamar a atenção a qualquer coisa, recorria à expressão “então, meninos, tomem lá atenção a isto”, coisa que criava animosidades.

Num dia de prova prática, ocorrida num dos pavilhões onde se davam aulas por falta de instalações apropriadas (um espaço retangular com o quadro ao fundo, a secretária da docente também, carteiras distribuídas em filas e porta de entrada num canto oposto ao quadro), a “mamã” começa a escrever no quadro o enunciado da prova, obviamente estando de costas para os alunos.

Acontece que aí na terceira ou quarta questão, enquanto a escrevia, a porta do fundo foi aberta e um aluno mais velho começou a dar em voz alta a solução para uma daquelas questões. Claro que houve algum “bruá” com o insólito da situação e eu também, entre outros, voltei a cabeça para trás para ver quem e donde vinha o “atrevimento”. Nesse instante a “mamã” também se virou e disse

- “arrume os seus papéis e saia!”.

Com o pressentimento que aquilo podia ser para mim perguntei ao colega que estava ao lado, que me disse que lhe parecia que sim. Olhei para a “mamã” que nesse momento estava com a cabeça voltada para baixo e continuei a procurar responder às questões. Voltei a ouvir

- “já lhe disse, arrume os papéis e saia!”.

Incomodado com a injustiça e com o “sangue na guelra” dos 19/20 anos, levantei-me e interpelei pouco amistosamente,

- “Isso é comigo?”

- “Sim, sim, saia!”

- “Mas, professora, eu não fiz nada, não era eu que falava, além disso já tenho estas questões resolvidas, porque é que tenho que sair?”

- “Porque eu mando!”

Revoltado com a situação, levantei-me e incorretamente (do ponto de vista “civilizacional”) cheguei perto da “mamã” e, literalmente, atirei, à bruta, com o papel onde estavam algumas respostas resolvidas, para cima da secretária e saí. É preciso que se diga, também em prol da verdade, que 4 ou 5 dos colegas presentes falaram em meu abono e fizeram também menção de abandonar a sala, mas consegui demovê-los a tal.

5.    – Consequências “quase” imediatas

Um pouco mais tarde, aquando da colocação das pautas com as classificações, verifiquei que no que me dizia respeito estava lá um provocador “8”, escrito por cima de número rasurado que, notava-se bem por o verniz corretor nem sequer disfarçar bem, que tinha dois dígitos. Estava ainda a tentar perceber/digerir o que se passava e as consequências do mesmo, quando vindo do corredor da secretaria aparece o “papá”. Na minha santa ingenuidade pergunto-lhe se não teria havido algum engano pois estava convicto de que no exame final ter tido um desempenho que esperava ser da ordem dos 14 ou 15 e afinal estava na pauta um 8.

Com a maior desfaçatez perguntou sibilinamente

- “qual é o seu número?”

ao que eu disse

- “8606” e ele replicou (mostrando assim conhecer bem a “estória”

- “ah, isso, é para ver se ganhas juízo para o ano!”.

Com esta situação, não foi possível mostrar que o aproveitamento era bom e como consequência fui chamado a incorporar o Exército, a meio de Julho de 1969 na EPC (Escola Prática de Cavalaria), em Santarém, para o 1º Ciclo do CSM.

6.    - Considerações

 É aqui que peço o vosso auxílio para tentar extrair conclusões deste emaranhado de acontecimentos e seus enquadramentos.

Valorizar o sistema de Ensino então vigente? O seu elitismo? A sua forma de aplicar pedagogia?

Por outro lado, é bem verdade que, por via dos acontecimentos, tive a oportunidade de contactar e conhecer tantas pessoas com as quais agora desenvolvo relações de amizade e respeito.

Então qual deverá ser o sentimento que devo privilegiar nestas recordações?

Hélder Sousa

Fur. Mil. Transmissões TSF

1 comentário:

Anónimo disse...

Hélder

O teu texto me parece muito actual e premente uma vez que não faltam vozes em que enaltecem o ensino antigo posto em comparação como moderno.
A titulo de brincadeira no nosso tempo havia o ensino liceal o das escolas técnicas com comercial nocturno e o vais trabalhar e estudar há noite se quiseres.
Após o 25 de A a reforma do ensino foi feita de muita vontade e grandes ideais com a máxima de um ensino para todos e ao mesmo nível.
Um sonho pois passados que são 50 anos as escolas mal apetrechadas, a sobrelotação, falta de professores ( quem limitou os acessos há carreira docente queixa-se hoje da falta dos ditos) e a alterações constantes ao sabor da cor do governo produz hoje um ensino onde crescem as disparidades entre o ensino publico e privado com nítidos benefícios para estes últimos.
Mas as injustiças de que o Hélder se queixa eram muito comuns tendo em conta a origem e classe social a que pertenciam os alunos.
Há coisas que nunca mudam e assim foram constituídas turmas como resultado do aproveitamento escolar deixando para trás os alunos com menos aproveitamento. Mas também ao dividirem uma turma sobre lotada tiveram o cuidado de escolher quem é que queriam numa e noutra. Isso deu grossa briga com um conjunto de pais onde me inclui que obrigou as duas turmas em questão serem remisturadas.
Depois também há os critérios do professor quanto a um a aluno como aconteceu com o Helder. Mas também muitos anos mais tarde aconteceu com a minha filha quando a professora substituta de física química intendeu que ela não tinha perfil para a nota que ostentava no seu aproveitamento escolar ( era bonita e loura não podia ser inteligente) assim reduziu-lhe a nota final no 12º anos e ainda por cima numa especifica.
Tudo isto no fim para dar a minha opinião que alguma coisa tem que ser feita para que certos cursos só possam ser frequentado por quem vem da escolas particulares e que ponham o o ensino publico com a qualidade porque se lutou . Um abraço

Juvenal Amado