AS VIRTUDES DO ENSINO
EM TEMPOS REMOTOSE
por isso atrevo-me a pedir que depois de lerem, se lerem, me ajudem com as
vossas opiniões, sobre que lições se podem tirar (se é que se podem tirar
algumas) do conjunto das situações.
1. - Vamos aos factos.
Depois
de ter feito o Curso de Montador-Electricista (era assim que se designava) na
Escola Industrial e Comercial de Vila Franca de Xira, terminado em 1964, fui
para Lisboa, cidade grande, fazer as chamadas Secções Preparatórias para o
possível ingresso no Instituto Industrial. Essa fase intermédia ocorreu na
Escola Industrial Machado de Castro, nos anos letivos de 1964/65 e 1965/66. Os
exames de admissão decorreram com aproveitamento e deste modo entrei no
Instituto Industrial de Lisboa para o Curso de Eletrotecnia e Máquinas em Outubro
de 1966.
2. – Enquadramento social
Dois
pequenos apontamentos para ajudar a complementar as situações e a focalizar as “cenas”
na época.
Um
desses apontamentos é para lembrar que o Ensino estava elitizado. Havia a via
liceal e a via do chamado “ensino técnico”. Aos “liceais” estava aberta a via para
a Universidade, nas suas várias vertentes, com os seus “cursos superiores”, enquanto
que para os do “ensino técnico” era privilegiada a “via profissional”, ou seja,
a entrada no mercado de trabalho para exercer uma profissão ou então, através
dos “Institutos”, para almejar alcançar uma situação que seria sempre reconhecida
como “cursos médios”.
Ao
nível do ensino da engenharia isso traduzia-se a que as duas vertentes, a “universitária”
e a “média” se materializavam no Instituto Superior Técnico (e Faculdades de
Engenharia) e nos Institutos Industriais, sedo que essa separação elitizada
projetava-se na Instituição Militar com os primeiros a integrar os Cursos de
Oficiais Milicianos (o COM) e os outros os Cursos de Sargentos Milicianos (o CSM).
Outro
pequeno apontamento é que pelos anos acima indicados, talvez ainda se lembrem,
pois já são anos “do século passado”, havia um esforço de guerra governamental em
terras africanas para defender da cobiça internacional aquelas terras e aquelas
gentes que nos tinham sido legadas pelas gestas dos descobrimentos e que os nossos
“antanhos” tinham desbravado e defendido para nós, “numa mão a Cruz, noutra a
Espada”.
Para
esse esforço foram mobilizados milhares de jovens. Aos que na época eram
estudantes, era facultada a possibilidade de adiamento da incorporação nas
Forças Armadas através de pedidos nesse sentido, com base no desenvolvimento
dos estudos.
Aos
jovens que frequentavam o Instituto Industrial, que para lá chegarem tinham
tido, para além da 4ª Classe de escolaridade, 5 anos de Ensino Técnico e depois
2 anos das Secções Preparatórias, num total de 7 anos, mas que não tinham “equivalência
funcional” aos 7 anos do Ensino Liceal, era também concedida a possibilidade de
“pedido de adiamento” mas, para tal, o “aproveitamento escolar” deveria ser
irrepreensível. Havia umas quantas “cadeiras”
que davam precedência a outras do ano seguinte e cuja falta implicava não se
poder avançar e, consequentemente, ao nível do “aproveitamento” era considerado
insuficiente para o fim pretendido.
3. - Continuando então com os factos.
Este
jovem que vos escreve, que até então tinha sido um aluno de razoável mérito, “distraiu-se”
um pouco no meio da “cidade grande” e das suas solicitações, embora diariamente
fizesse as viagens de comboio entre a casa familiar e a Escola. Como resultado
disso, as notas da maior parte das disciplinas da 1ª Frequência desse ano letivo
de 1966/67 foram o que se pode chamar “um desastre”. Após isso, e reganhando
vontade, atirou-se a tentar recuperar o possível e aconselhado por um Professor
de uma das cadeiras fulcrais, a Física, deixou-a “cair” para ter possibilidade
e capacidade para outras. Assim fiz.
Não
passei de ano na totalidade, pois algumas cadeiras ficaram para trás, mas como
ainda não tinha chegado a idade da incorporação militar não houve consequências
imediatas. Entrei então no meu segundo ano de presença no Instituto, ano letivo
de 1967/68, embora a frequentar novamente cadeiras do 1º ano e, salvo erro, apenas
duas já do 2º ano, as que não necessitavam de precedência e tinha tido aproveitamento.
Esse
ano correu bem.
4. – A situação “estranha”.
No
ano seguinte, ano letivo de 1968/69, em que já tinha ido “às sortes” em Agosto
8e aprovado para todo o serviço), as coisas “complicaram-se” a partir de um
acontecimento insólito. A cadeira de Matemática II tinha um professor na “teórica”,
de nome “Vítor qualquer coisa”, mas por lá conhecido na gíria por “papá” já que
tínhamos a “mamã”, esposa dele, a dar a “prática”. Diga-se então, em abono da
verdade, que funcionava assim como uma “disciplina familiar”…
A
“mamã” era uma pessoa de baixa estatura que contrastava fortemente com a altura
física do “papá”, o que por vezes era motivo de piadinhas, mas o mais agravante
era o facto de a senhora dar aulas a crianças do preparatório e algumas vezes
não se dava conta de estar a leccionar no Instituto a “pessoas crescidas” e com
recorrência, para chamar a atenção a qualquer coisa, recorria à expressão “então,
meninos, tomem lá atenção a isto”, coisa que criava animosidades.
Num
dia de prova prática, ocorrida num dos pavilhões onde se davam aulas por falta
de instalações apropriadas (um espaço retangular com o quadro ao fundo, a
secretária da docente também, carteiras distribuídas em filas e porta de
entrada num canto oposto ao quadro), a “mamã” começa a escrever no quadro o enunciado
da prova, obviamente estando de costas para os alunos.
Acontece
que aí na terceira ou quarta questão, enquanto a escrevia, a porta do fundo foi
aberta e um aluno mais velho começou a dar em voz alta a solução para uma
daquelas questões. Claro que houve algum “bruá” com o insólito da situação e eu
também, entre outros, voltei a cabeça para trás para ver quem e donde vinha o “atrevimento”.
Nesse instante a “mamã” também se virou e disse
-
“arrume os seus papéis e saia!”.
Com
o pressentimento que aquilo podia ser para mim perguntei ao colega que estava
ao lado, que me disse que lhe parecia que sim. Olhei para a “mamã” que nesse
momento estava com a cabeça voltada para baixo e continuei a procurar responder
às questões. Voltei a ouvir
-
“já lhe disse, arrume os papéis e saia!”.
Incomodado
com a injustiça e com o “sangue na guelra” dos 19/20 anos, levantei-me e
interpelei pouco amistosamente,
-
“Isso é comigo?”
-
“Sim, sim, saia!”
-
“Mas, professora, eu não fiz nada, não era eu que falava, além disso já tenho
estas questões resolvidas, porque é que tenho que sair?”
-
“Porque eu mando!”
Revoltado
com a situação, levantei-me e incorretamente (do ponto de vista “civilizacional”)
cheguei perto da “mamã” e, literalmente, atirei, à bruta, com o papel onde estavam
algumas respostas resolvidas, para cima da secretária e saí. É preciso que se
diga, também em prol da verdade, que 4 ou 5 dos colegas presentes falaram em
meu abono e fizeram também menção de abandonar a sala, mas consegui demovê-los
a tal.
5. – Consequências “quase” imediatas
Um
pouco mais tarde, aquando da colocação das pautas com as classificações,
verifiquei que no que me dizia respeito estava lá um provocador “8”, escrito
por cima de número rasurado que, notava-se bem por o verniz corretor nem sequer
disfarçar bem, que tinha dois dígitos. Estava ainda a tentar perceber/digerir o
que se passava e as consequências do mesmo, quando vindo do corredor da
secretaria aparece o “papá”. Na minha santa ingenuidade pergunto-lhe se não
teria havido algum engano pois estava convicto de que no exame final ter tido
um desempenho que esperava ser da ordem dos 14 ou 15 e afinal estava na pauta
um 8.
Com
a maior desfaçatez perguntou sibilinamente
-
“qual é o seu número?”
ao
que eu disse
-
“8606” e ele replicou (mostrando assim conhecer bem a “estória”
-
“ah, isso, é para ver se ganhas juízo para o ano!”.
Com
esta situação, não foi possível mostrar que o aproveitamento era bom e como
consequência fui chamado a incorporar o Exército, a meio de Julho de 1969 na
EPC (Escola Prática de Cavalaria), em Santarém, para o 1º Ciclo do CSM.
6. - Considerações
É aqui que peço o vosso auxílio para tentar
extrair conclusões deste emaranhado de acontecimentos e seus enquadramentos.
Valorizar
o sistema de Ensino então vigente? O seu elitismo? A sua forma de aplicar pedagogia?
Por
outro lado, é bem verdade que, por via dos acontecimentos, tive a oportunidade
de contactar e conhecer tantas pessoas com as quais agora desenvolvo relações
de amizade e respeito.
Então
qual deverá ser o sentimento que devo privilegiar nestas recordações?
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
1 comentário:
Hélder
O teu texto me parece muito actual e premente uma vez que não faltam vozes em que enaltecem o ensino antigo posto em comparação como moderno.
A titulo de brincadeira no nosso tempo havia o ensino liceal o das escolas técnicas com comercial nocturno e o vais trabalhar e estudar há noite se quiseres.
Após o 25 de A a reforma do ensino foi feita de muita vontade e grandes ideais com a máxima de um ensino para todos e ao mesmo nível.
Um sonho pois passados que são 50 anos as escolas mal apetrechadas, a sobrelotação, falta de professores ( quem limitou os acessos há carreira docente queixa-se hoje da falta dos ditos) e a alterações constantes ao sabor da cor do governo produz hoje um ensino onde crescem as disparidades entre o ensino publico e privado com nítidos benefícios para estes últimos.
Mas as injustiças de que o Hélder se queixa eram muito comuns tendo em conta a origem e classe social a que pertenciam os alunos.
Há coisas que nunca mudam e assim foram constituídas turmas como resultado do aproveitamento escolar deixando para trás os alunos com menos aproveitamento. Mas também ao dividirem uma turma sobre lotada tiveram o cuidado de escolher quem é que queriam numa e noutra. Isso deu grossa briga com um conjunto de pais onde me inclui que obrigou as duas turmas em questão serem remisturadas.
Depois também há os critérios do professor quanto a um a aluno como aconteceu com o Helder. Mas também muitos anos mais tarde aconteceu com a minha filha quando a professora substituta de física química intendeu que ela não tinha perfil para a nota que ostentava no seu aproveitamento escolar ( era bonita e loura não podia ser inteligente) assim reduziu-lhe a nota final no 12º anos e ainda por cima numa especifica.
Tudo isto no fim para dar a minha opinião que alguma coisa tem que ser feita para que certos cursos só possam ser frequentado por quem vem da escolas particulares e que ponham o o ensino publico com a qualidade porque se lutou . Um abraço
Juvenal Amado
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