O Cafezinho foi um puto reguila, voluntarioso, sempre a armar confusão, mas todos nós miúdos gostávamos da sua liberdade e de o ter por perto. Era um valdevinos mas um líder, nem sempre pelas melhores razões. Tenho saudades dele, pois faz parte da minha juventude e dos tempos que já não voltam.
Juvenal Amado
O CAFEZINHO
Amparado pelo enfermeiro, o “Cafezinho” deu
dois ou três passos titubeantes na recepção das urgências do hospital de
Alcobaça.
Um
penso na cabeça denuncia o traumatismo, do qual foi tratado pelos serviços
daquela unidade hospitalar. Toda a gente o conhecia. Era uma figura simpática,
que nos habituámos a ver passar numa pasteleira enorme,
onde se gingava no selim para chegar com os pés aos pedais. Infelizmente o
combustível da bicicleta era tinto normalmente.
Pequeno,
com ar teatral, abriu os braços e num gesto de quem está num palco cantou com
voz pastosa, “Tuudo ééé
preciso nasss passagens deeesta vidaaaaa!!”
O
seu nome era José, a alcunha ganhou-a quando foi preso, por contrabandear café
durante a guerra civil espanhola. Uns tiveram sorte, ele teve pouca. O filho,
que o esperava fora da sala, abananou a cabeça e disse: - “Pois, e agora cantas…”
Todos
nos rimos e o Cafezinho
aproveitou para tentar logo vender lotaria aos presentes.
Vendedor
de jogo de lotaria, era um autêntico vendedor de jogo branco. Eu próprio junto
numa sociedade, lhe comprei sempre o mesmo número durante uns anos. Era o 25209,
nunca deu nada, até terminações foram poucas. Comecei antes da tropa e só abandonei
quando saí da empresa em 1980.
Mas
a estória que quero contar é a do filho Zé Café, sim, o mesmo que o esperava naquele dia.
Andámos
na escola primária até à quarta classe, embora ele fosse mais velho que eu. Era
o que se pode chamar um pardal de calções, fazia toda a espécie de tropelias e
arcou com muitas que ele não fez. Uma fisga era uma arma infalível nas suas
mãos. Escolhia as pedras com todo o cuidado e voltava da caça com inúmeros
pardais á cintura.
Era visita frequente do posto da polícia.
Quando não havia culpado à vista logo alguém se lembrava do Cafezinho.
Um
dia também fui parar à esquadra, por me ter envolvido à pancada com ele, coisa de
que me arrependi de imediato, pois levei uma carga de pancada no jardim junto
ao campo de ténis. Quem jogava ténis naquele tempo era uma meia dúzia de
colunáveis da terra, que pagavam aos putos para lhes apanharem bolas. Ora aí
estava um bom ponto de discórdia, entre a canalha miúda.
Entretanto
saímos da escola e fomos trabalhar, cada um seguiu uma adolescência diferente.
Voltámos
a tornar-nos mais íntimos quando, feita a minha recruta no CICA 4, sou enviado
para o RI6 na Senhora da Hora, na cidade do Porto. Lá estava ele quase pronto,
pois era da incorporação anterior. Eu, o Zé Lourenço, que fez a recruta comigo
e o Zé Café tornámo-nos
inseparáveis. Vínhamos a casa de fim de semana, no regresso o Cafezinho arranjava-nos
boleia nas camionetas dos porcos do senhor Manel Inácio. O cheiro agarrava-se a
nós o resto da semana.
Quando
chegávamos à porta do quartel por volta das três da manhã, já íamos munidos do
jornal para em cima dele nos deitarmos, junto ao muro até abrirem a Porta de
Armas.
O Cafezinho foi o nosso
cicerone pelo Porto fora. Alguns bares na Praça da Batalha e a feira do palácio
de Cristal, eram normalmente o nosso destino.
Aí
o Cafezinho dava show. Nas barracas de
brindes com a espingarda, era cada tiro cada gaio. Era de frente, de lado de
costas, ou com um espelho não falhava um tiro. Juntava um monte de gente só
para o verem disparar.
Nós
três quotizávamo-nos e só ele é que atirava. No fim de cada sessão, lá vinha a
prenda entregue de mau modo pelo dono da barraca, que via o negócio ser pouco
rentável com gente como nós.
Um
dia, quando estava a dar-nos uma garrafa de ginja, que tínhamos ganho,
perguntou-nos com um ar agastado se nós nunca mais éramos mobilizados. Respondemos-lhe
em ar de gozo, que já tinha passado o nosso número mecanográfico e que íamos
acabar a tropa ali mesmo no Porto.
Bem,
o Zé Café foi para Moçambique, o Zé Lourenço para Angola e eu para a Guiné.
Quando regressámos cada um foi à sua vida,
embora quando nos encontrávamos, havia sempre dois dedos de conversa a
relembrar.
O
Zé Cafezinho foi atropelado em Lisboa, esteve entre a vida e a morte, pois
ficou todo migado. Nunca mais largou as canadianas, não conseguiu continuar a
trabalhar na Crisal e o seu sustento foi buscá-lo à venda de jogo da lotaria,
concessão que era do pai. Após a morte do pai a mesma ficou para ele. Continuei
a comprar o tal número, que entretanto já não eram os mesmos do inicio a
associar-se.
Passados
uns anos saí de Alcobaça e a morte dele acabou por me passar ao lado. Fiquei
espantado quando falei nele e me disseram que ele tinha falecido.
25209.
Amanhã vou fazer uma aposta e vou utilizar os mesmos números. Talvez em
vésperas de também eu engrossar o fundo de desemprego, vá buscar um pouco de
sorte que o Zé Café tentou vender e nunca a teve para ele.
Juvenal Amado
Obs: Um
texto do Juvenal Amado publicado em 25 de Janeiro de 2010, que reproduzimos com
a devida vénia ao autor e ao blogue “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, que
o publicou.
2 comentários:
Olá Juvenal
Costuma-se dizer que "recordar é viver".
Pois será, mas nem sempre se recordam "coisas boas" e daí que então, por vezes, esse recordar poderá trazer recordações amargas.
Ou apenas saudosas, o que parece ser o caso deste teu texto.
Nos tempos das nossas adolescências, com vivências muito diferentes das dos tempos de hoje, aparecem quase sempre umas figuras patuscas, mas marcantes, como as que te referes.
Acabam por ser referências de memória e ajudam a marcar os tempos.
Já agora, essa de "jogo branco" seria a coisa mais normal de acontecer.
Mas insiste.
Se não te habilitares, por mais milagroso que possa ser "o santo", nunca te vai sair nada!
Hélder Sousa
Gostei de ler e saber da sua história com os seus amigos "cafezinho pai e filho". São vivências que ao fim de muitos anos nos fazem bem recordar.
Continue a jogar, pode ser que acerte.
Um abraço amigo.
Mª Arminda
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