segunda-feira, 9 de maio de 2022

P1338: AMIGOS DO PEITO

O Cafezinho foi um puto reguila, voluntarioso, sempre a armar confusão, mas todos nós miúdos gostávamos da sua liberdade e de o ter por perto. Era um valdevinos mas um líder, nem sempre pelas melhores razões. Tenho saudades dele, pois faz parte da minha juventude e dos tempos que já não voltam.

Juvenal Amado


O CAFEZINHO

Amparado pelo enfermeiro, o “Cafezinho” deu dois ou três passos titubeantes na recepção das urgências do hospital de Alcobaça.

Um penso na cabeça denuncia o traumatismo, do qual foi tratado pelos serviços daquela unidade hospitalar. Toda a gente o conhecia. Era uma figura simpática, que nos habituámos a ver passar numa pasteleira enorme, onde se gingava no selim para chegar com os pés aos pedais. Infelizmente o combustível da bicicleta era tinto normalmente.

Pequeno, com ar teatral, abriu os braços e num gesto de quem está num palco cantou com voz pastosa, “Tuudo ééé preciso nasss passagens deeesta vidaaaaa!!”

O seu nome era José, a alcunha ganhou-a quando foi preso, por contrabandear café durante a guerra civil espanhola. Uns tiveram sorte, ele teve pouca. O filho, que o esperava fora da sala, abananou a cabeça e disse: - “Pois, e agora cantas…”

Todos nos rimos e o Cafezinho aproveitou para tentar logo vender lotaria aos presentes.

Vendedor de jogo de lotaria, era um autêntico vendedor de jogo branco. Eu próprio junto numa sociedade, lhe comprei sempre o mesmo número durante uns anos. Era o 25209, nunca deu nada, até terminações foram poucas. Comecei antes da tropa e só abandonei quando saí da empresa em 1980.

Mas a estória que quero contar é a do filho Zé Café, sim, o mesmo que o esperava naquele dia.

Andámos na escola primária até à quarta classe, embora ele fosse mais velho que eu. Era o que se pode chamar um pardal de calções, fazia toda a espécie de tropelias e arcou com muitas que ele não fez. Uma fisga era uma arma infalível nas suas mãos. Escolhia as pedras com todo o cuidado e voltava da caça com inúmeros pardais á cintura.
Era visita frequente do posto da polícia. Quando não havia culpado à vista logo alguém se lembrava do Cafezinho.

Um dia também fui parar à esquadra, por me ter envolvido à pancada com ele, coisa de que me arrependi de imediato, pois levei uma carga de pancada no jardim junto ao campo de ténis. Quem jogava ténis naquele tempo era uma meia dúzia de colunáveis da terra, que pagavam aos putos para lhes apanharem bolas. Ora aí estava um bom ponto de discórdia, entre a canalha miúda.

Entretanto saímos da escola e fomos trabalhar, cada um seguiu uma adolescência diferente.

Voltámos a tornar-nos mais íntimos quando, feita a minha recruta no CICA 4, sou enviado para o RI6 na Senhora da Hora, na cidade do Porto. Lá estava ele quase pronto, pois era da incorporação anterior. Eu, o Zé Lourenço, que fez a recruta comigo e o Zé Café tornámo-nos inseparáveis. Vínhamos a casa de fim de semana, no regresso o Cafezinho arranjava-nos boleia nas camionetas dos porcos do senhor Manel Inácio. O cheiro agarrava-se a nós o resto da semana.

Quando chegávamos à porta do quartel por volta das três da manhã, já íamos munidos do jornal para em cima dele nos deitarmos, junto ao muro até abrirem a Porta de Armas.

Cafezinho foi o nosso cicerone pelo Porto fora. Alguns bares na Praça da Batalha e a feira do palácio de Cristal, eram normalmente o nosso destino.

Aí o Cafezinho dava show. Nas barracas de brindes com a espingarda, era cada tiro cada gaio. Era de frente, de lado de costas, ou com um espelho não falhava um tiro. Juntava um monte de gente só para o verem disparar.

Nós três quotizávamo-nos e só ele é que atirava. No fim de cada sessão, lá vinha a prenda entregue de mau modo pelo dono da barraca, que via o negócio ser pouco rentável com gente como nós.

Um dia, quando estava a dar-nos uma garrafa de ginja, que tínhamos ganho, perguntou-nos com um ar agastado se nós nunca mais éramos mobilizados. Respondemos-lhe em ar de gozo, que já tinha passado o nosso número mecanográfico e que íamos acabar a tropa ali mesmo no Porto.

Bem, o Zé Café foi para Moçambique, o Zé Lourenço para Angola e eu para a Guiné.

Quando regressámos cada um foi à sua vida, embora quando nos encontrávamos, havia sempre dois dedos de conversa a relembrar.

O Zé Cafezinho foi atropelado em Lisboa, esteve entre a vida e a morte, pois ficou todo migado. Nunca mais largou as canadianas, não conseguiu continuar a trabalhar na Crisal e o seu sustento foi buscá-lo à venda de jogo da lotaria, concessão que era do pai. Após a morte do pai a mesma ficou para ele. Continuei a comprar o tal número, que entretanto já não eram os mesmos do inicio a associar-se.

Passados uns anos saí de Alcobaça e a morte dele acabou por me passar ao lado. Fiquei espantado quando falei nele e me disseram que ele tinha falecido.

25209. Amanhã vou fazer uma aposta e vou utilizar os mesmos números. Talvez em vésperas de também eu engrossar o fundo de desemprego, vá buscar um pouco de sorte que o Zé Café tentou vender e nunca a teve para ele.

Juvenal Amado

Obs:  Um texto do Juvenal Amado publicado em 25 de Janeiro de 2010, que reproduzimos com a devida vénia ao autor e ao blogue “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, que o publicou.

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Olá Juvenal

Costuma-se dizer que "recordar é viver".
Pois será, mas nem sempre se recordam "coisas boas" e daí que então, por vezes, esse recordar poderá trazer recordações amargas.
Ou apenas saudosas, o que parece ser o caso deste teu texto.
Nos tempos das nossas adolescências, com vivências muito diferentes das dos tempos de hoje, aparecem quase sempre umas figuras patuscas, mas marcantes, como as que te referes.
Acabam por ser referências de memória e ajudam a marcar os tempos.
Já agora, essa de "jogo branco" seria a coisa mais normal de acontecer.
Mas insiste.
Se não te habilitares, por mais milagroso que possa ser "o santo", nunca te vai sair nada!

Hélder Sousa

Anónimo disse...

Gostei de ler e saber da sua história com os seus amigos "cafezinho pai e filho". São vivências que ao fim de muitos anos nos fazem bem recordar.
Continue a jogar, pode ser que acerte.
Um abraço amigo.
Mª Arminda