segunda-feira, 21 de março de 2022

P1335: RELATIVIZANDO...

      AS VIRTUDES (OU O CONFORTO) DA “RELATIVIZAÇÃO”

Relativizar, será sempre, talvez, uma forma de nos sentirmos confortáveis com situações que normalmente podiam ser incómodas.

E isto, sendo certo, vem a propósito de quê?

Bem, às vezes, pequenos apontamentos, pequenas coisas trazem-nos à memória factos já tão afastados no tempo que acabamos por os recordar com saudade, por um lado e com a bonomia, com um sorriso, por outro.

Há dias, a propósito duma troca de impressões e/ou comentários com o Joaquim Costa, autor de um livro intitulado “Memórias de guerra de um tigre azul”, em que o “azul” é uma referência iniludível à preferência clubista do autor, desenvolveu-se a teoria de que certos jornais desportivos eram órgãos oficiosos de outros certos Clubes.

Isto é uma verdade conveniente, preconcebida e desenvolvida para alimentar as animosidades que, a pretexto das questões desportivas, leia-se questões do “pontapé-na-bola”, alguns sectores vêm propalando para defesa dos seus pontos de vista e das práticas das suas ações.

Hoje por hoje diz-se que os jornais de Lisboa promovem o Benfica e às vezes o Sporting e por isso foi necessário arranjar um outro jornal desportivo diário que promovesse o F.C. do Porto. Teríamos assim consumada, também em termos jornalísticos, uma (falsa) divisão norte/sul (mais uma) que tanto tem sido prejudicial ao desenvolvimento harmonioso e progressista do País.

E falsa porque, por um lado, nem sequer é o “Norte”, é mais algumas elites do Porto que, a pretexto das questões futebolísticas, procuram congregar o Norte à sua volta para obterem vantagens e, por outro, também não é o “Sul”, porque na realidade o que se está “contra” é o propalado centralismo do eixo Lisboa-Cascais e assim, duma penada, ostracizam mais de metade do País.

Tudo isto é triste, mas como se diz na canção, tudo isto existe, embora nem tudo seja Fado.

Temos então o jornal “O Jogo” como porta-voz oficioso do F. C. do Porto, dos seus interesses e pontos de vista, desportivos e outros menos claros, o jornal “A Bola” veiculando a “boa imprensa” do Benfica e o jornal “Record” como órgão do Sporting. Será assim? Não sei responder, pois deixei de ligar a esse “fenómeno desportivo”, tanto em jornais como nos inenarráveis “debates” televisivos. Por isso, façam o favor de escolher e tomar e formar as vossas opiniões.

Do que me lembro bem, quando tinha aí 15/16 anos é que havia ali bem perto da casa onde vivia, em Vila Franca de Xira, a cerca de 30 metros da porta, uma leitaria (naquela época havia “leitarias”), na esquina do quarteirão, a “Leitaria Popular” que era propriedade dum casal, o Heitor e a Irene. O Heitor era um homem afável, pacato, muito calmo, que tinha feito o serviço militar com o meu pai nas Caldas da Rainha e creio que também em Cabo Verde. A Irene era uma mulher trabalhadora, mas muito impulsiva e isso era pretexto para alguns clientes da Leitaria a provocarem quando as situações desportivas não eram favoráveis às suas, dela, simpatias. Além da leitaria tinham também uma espécie de banca de venda de jornais e coisas assim, tabaco, por exemplo, no átrio da Estação dos Caminhos de Ferro em Vila Franca e por isso as presenças de ambos eram alternadas sendo que às vezes o filho Carlos (um ou dois anos mais velho que eu) ajudava num desses locais.

À tarde e noite, tendo uma televisão, coisa que ainda não era corriqueira na maioria das casas (estas recordações reportam-se aos anos 1963/64), era essa “caixinha mágica” que prendia as atenções e eu era cliente das séries do “Ivanhoe”, do “Bonanza”, do “Mister Ed”, do “Homem Invisível”, etc. mas durante as manhãs, quando calhava, ia lá ler os jornais, principalmente os desportivos. E havia o “Record”, o “Mundo Desportivo” e “A Bola”. Neste último gostava de ler, não só as novidades desportivas e futebolísticas mas, principalmente, as reportagens e outros artigos sobre coisas e lugares do Mundo. Havia quem dissesse que esse jornal era mais que um mero órgão desportivo, era também formativo….

A relativização que referi no princípio advém das situações da época em que após anos de hegemonia futebolística do Sporting, emergiu o Benfica após as passagens de treinadores como o Valdevielso, o Otto Glória e o Béla Gutmann, que assim guindaram esse Clube a uma época de grande protagonismo.

A Irene era sportinguista, ferrenha, como se dizia, e o “desporto favorito” de alguns clientes da leitaria era “picarem-na” com os desaires do Sporting (uma espécie de coisa parecida com o que se passa hoje nas chamadas redes sociais, nomeadamente o “Facebook”, embora com menos violência verbal) e recordo então, num determinado dia de grande provocação, a Irene, no meio do seu desespero ter dito “tá bem, tá bem, o Benfica é campeão, mas quem é o vice-campeão, quem é, quem é?”.

Portanto, como se vê, é sempre possível relativizar. Aprendam!

Hélder Sousa

Fur. Mil. Transmissões TSF

8 comentários:

Valdemar Silva disse...

Hélder, excelente texto.
Isso do clubismo é muito interessante, com grande dificuldade de se entender por alguém ser do Benfica e do Sporting, já que do Porto é mais abrangente à região geográfica, o que não quer dizer haver benfiquistas e sportinguistas no Porto e portistas em Faro.
O que se praticou nos anos 40/50 do século passado, foi o aparecimento dos chamados clubes "filiais" : Sporting da Covilhã, Benfica de Castelo Branco por exemplo, com as cores e emblema da respectiva "mãe". Em relação ao F.C. do Porto não se passou o mesmo, a não ser com as cores do equipamento, e até houve uma situação muito engraçada com a criação do Futebol Clube de Lisboa, com sede na Rua da Saudade, em que o equipamento e o emblema é exatamente igual ao do F.C. do Porto. Carago!
Não há dúvida que os clubes foram formados por camadas sociais muito concretas e daí advir a rivalidade. E no caso do futebol, por cá, ser coisa praticada por gente fina, as classes sociais populares não tinham tempo/descanso para tais entretimentos. Por isso, as rivalidades eram latentes entre os "carroceiros" do Carcavelinhos, operários fabris de Alcântara, os finórios com ingleses da linha de Cascais ou mais tarde com os aristocráticos do Sporting.
E nunca mais se perdeu essa rivalidade, em muitos casos de doentia aversão.
A aversão era de tal forma, que uma vez fui ver o Glorioso ao Estádio da Luz contra uma equipa francesa e o Sporting estava a jogar em Espanha e a perder por 4-0, e ouvi o comentário 'o Sporting está a levar 4 na pá, quero lá saber, mas é uma equipa portuguesa, tá bem mas até deviam levar 10'.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Carlos Pinheiro disse...

Recordar é viver e esta coisa da clubite, antigamente era levada sério, mas depois foi perdendo o juizo quando o malvado do dinheiro começou a empoeirar os olhos a certos dirigentes e de muitos adeptos.
Mas o que eu queria dizer era que naquela altura também havia o "Norte Desportivo"...não se lembram? Vendia-se mais no norte, claro, mas existiu durante bastantes anos.
Aliás no Norte só se vendia cerveja Cristal e no Sul era a Sagres que imperava e na altuira tanto uma como a outra eram portuguesas.,.,.
Abraço a todos os amigos, sejam de que clube forem.
Carlos Pinheiro

Alberto Branquinho disse...


Olá Helder!

Eu sou do norte, mais propriamente do Alto Douro.
Gostei do texto, mas deixa-me acrescentar umas coisitas.

1 - Norte versus Sul. Póis! MAS, como tu dizes, o Norte não é só a cidade do Porto. E o sul não é Lisboa - é o Baixo Alentejo e o Algarve.
2 - Porto - é grande a confusão entre a cidade do Porto e o F.C. do Porto quando se discute "desporto".
3 - DESPORTO não é aquilo que vem sendo chamado de tal. No futebol (e não só) isso a que chamam de desporto é, afinal: Espectáculo (competitivo) entre profissionais contratados e (bem pagos) por sociedades anónimas (ditas desportivas), em que esses profissionais poderão estar, agora, ao serviço de uma outra sociedade contra a qual se empenharam, no ano anterior, para que ganhasse à actual.

MAIS DIRIA, mas não quero chatear.

G'andabraço
Alberto Branquinho

Juvenal Amado disse...

E sempre um prazer o que Hélder escreve não tendo que acrescentar nada, conto só um episódio dos anos 74/75 quando em Alcobaça ouvi este comentário " não compro mais a Bola porque esse jornal e dos c....,
Hoje aquele que era um jornal de referência cultural para além de desportivo é só mais igual aos outros. Um abraço

Hélder Valério disse...

Caros amigos e camaradas

Agradeço os vossos benevolentes comentários pelo que ajudam a enquadrar melhor o que se escreve e pretende comunicar.
Devo dizer que este texto foi escrito antes dos preocupantes acontecimentos que preenchem a "ordem do dia" dos tempos atuais, pelo que peço, encarecidamente, que não vejam nele uma forma de distração.

Indo ao assunto, claro que para o "tema", em si mesmo, concorre apenas quase a parte final e tudo o que está antes pode ser entendido como "matéria para encher" mas não é assim, achei necessário para melhor explicar não só como se produziu o fenómeno da memória (o comentário do Joaquim Costa referido) como também o tempo e o espaço relativos ao que me fez recordar.

Caro Valdemar, pesquisar as origens e esgravatar no tempo, as evoluções dos principais (e não só) emblemas clubísticos é um exercício interessante e que pode ser educativo, mas tenho a sensação que apenas para "consumo próprio". Hoje por hoje, poucos se interessam por pensar, aprender e refletir, é muito mais fácil "consumir" acriticamente as "opiniões" formatadas e unanimistas que vão fazendo o "conhecimento" que devemos "consumir".

Caro Carlos Pinheiro sim, é verdade que também havia o "Norte Desportivo", mas por esses tempos não tinha assim tantos leitores por terras ribatejanas que justificasse a sua presença nas bancas de jornais (admito que talvez por assinatura) ou nos locais de leitura pública como, no caso, a "Leitaria Popular". Aliás, e porque para o objetivo do texto, era a questão dos jornais desportivos que mais importava, ficou omissa a referência (por desnecessária) a outros jornais, que também por lá havia, não fosse até eles terem também a tal banca de jornais que lá referi, e assim havia o "Diário de Notícias" e "O Século" e de tarde o "Diário Popular". A propósito, alguns, poucos, anos passados do episódio relatado, com o aparecimento do vespertino "Capital", alguns vendedores de jornais "engraçadinhos", costumavam apregoar os jornais da tarde como "Lisboa, Capital, República, Popular" fingindo não perceber o quanto de provocatório (e perigoso) tal pregão continha.
Quanto às cervejas... acho que a Cristal era de Coimbra e que no Porto a grande força era da "Super Bock".

Caro Branquinho, as tuas observações e comentários são sempre absorvidos com avidez, e os de hoje estão nessa linha de capacidade de dizer em frases curtas o que alguns (eu, incluído) necessitam de "estender a manta" para apresentar a ideia. Todos os teus três pontos estão certíssimos. E como não queres "chatear" ficas pelos três, contidos, pontos. Tens direito a isso, naturalmente, e não sou eu que vou, sequer tentar, demover um homem de Foz Côa (terra de nascimento da minha mulher) a violentar as suas vontades. Obviamente!.

Caro Juvenal, o que referes relativamente ao jornal "A Bola" não me é estranho. Aliás faço uma velada referência a essa característica informativa/formativa no texto que escrevi. Velada, porque não era meu objetivo levar o assunto para esse lado, mas sim, o jornal, por norma, a a par das notícias e tricas desportivas e "futeboleiras" publicava alguns textos de notícias e reportagens com outras aspetos sociais.

Hélder Sousa

Juvenal Danado disse...

Ora bem, relativizar. Tão necessário no desporto, como em tudo na vida. Relativizar, no que concerne ao desporto, é também sopesar o mérito dos outros e dos nossos, e dá-lo a quem o merece - o que nem sempre somos capazes de fazer, porque o clubismo vem ao de cima e tolhe-nos o discernimento e a razão. Se assim não fosse, porém, talvez não tivéssemos o sal da rivalidade, e não é líquido (pelo menos pra mim) que o interesse pelas atividades desportivas mobilizasse as multidões que mobiliza.
Muito bem escrito, amigo Hélder, um gosto ler.
Os meus parabéns e agradecimentos pelo envio.
E aquele abraço de camarada de armas.

Hélder Valério disse...

Caros amigos
A pedido do Joaquim Costa, afinal o "despoletador" da lembrança que aqui deixei, reproduzo aqui o mail que me enviou, comentando o texto acima.

Meu caro Hélder,

Belíssimo texto, que assinaria por Baixo.

Isso de relativizar as coisas é um conceito de vida, fundamental, para quem presa a sua saúde mental, encontrando zonas de conforto, para mitigar acontecimentos desagradáveis que surgem, infelizmente e inevitavelmente, nas nossas vidas

Já que falamos de” futebóis” (sem ultrapassar as linhas vermelhas impostas pelas Tabancas, Grande e do Centro), ainda não há muito tempo, dois “grandes “comentadeiros” televisivos (O impagável Rui Santos e um outro, que felizmente, não fixei o nome), ao comentarem a situação do Benfica, enfatizaram a ideia de um último esforço para alcançarem o ao 2º lugar, fundamental, segundo eles, já que o segundo lugar, estruturalmente, é mais importante do que o 1.º!!!

É isso!!!...Relativizar!!!

A Dona Irene a “comentadeira” televisiva, já!!!

Se quiseres e achares de interesse podes publicar como comentário no teu post da Tabanca do Centro, assim respondia também ao nosso Valdemar com uma pequena bicada, de águia azul.

Um grande Abraço

Joaquim Costa

Carlos Pinheiro disse...

Helder. A superbock ainda não havia nessa altura. Era a Cristal do Porto e até na Guiné havia Cristal às vezes...Sabes que fiz a especialidade no Porto e e também tirei essa espeacialidade da Cristal...
Um abraço
Carlos Pinheiro