EFEITOS COLATERAIS DA
CRISE ACADÉMICA DE 1969
Carlos Pinheiro |
Estávamos na Primavera de 1969. Era Abril. Já
tinha passado 6 meses da Comissão na Guiné, que viria a prolongar-se por 25 longos
meses.
Tinha partido recentemente o braço esquerdo
num acidente sem história. Andava de “baixa” e frequentemente, depois do
almoço, durante o chamado período da “sesta” desenfiava-me de Santa Luzia e do
Q.G. até à cidade, para conviver com a malta que também estava desenfiada em
Bissau, à espera de transporte para o mato ou para a Metrópole.
Os sítios onde nos encontrávamos eram os
habituais. O Café do Bento a que carinhosamente chamávamos a 5ª Rep., o ponto
de encontro por excelência da malta do mato.
E eu tinha amigos no mato em todo o lado. Em Buba, em Tite, em Jabadá, Nova Sintra, em Catió, em Aldeia Formosa, em Bafatá, em Mansoa, em Farim, em Piche, em Bigene, em Bula, em Nova Lamego, no Cacheu, em Susana, em Varela, e depois até vim a fazer amigos quando a CCaç 1790 abandonou Madina do Boé, com a tragédia conhecida, uma vez que foram colocados na “minha guerra” dois dos sobreviventes.
E eu tinha amigos no mato em todo o lado. Em Buba, em Tite, em Jabadá, Nova Sintra, em Catió, em Aldeia Formosa, em Bafatá, em Mansoa, em Farim, em Piche, em Bigene, em Bula, em Nova Lamego, no Cacheu, em Susana, em Varela, e depois até vim a fazer amigos quando a CCaç 1790 abandonou Madina do Boé, com a tragédia conhecida, uma vez que foram colocados na “minha guerra” dois dos sobreviventes.
Era rapaziada que tinha andado a estudar
comigo na Escola Industrial de Torres Novas, era a malta da minha terra, Alcanena,
era pessoal de Pernes e de Mira de Aire que frequentava de vez em quando nos
bailaricos da época, eram colegas dos Serviços Médico Sociais para onde eu
tinha entrado em 1964, era a rapaziada que tinha estado comigo na Escola
Prática de Cavalaria em Santarém e que comigo tinha chumbado no Curso de
Sargentos Milicianos e que também tinha sido “recompensada” com uma comissão na
Guiné, era malta que tinha estado comigo na Especialidade no Regimento de
Transmissões no Porto, na Arca d’Agua, era malta que tinha ido comigo no UIGE
em rendição individual – enfim, era um conjunto alargado de companheiros e
amigos embarcados no mesmo barco da Guerra da Guiné.
Mas também nos encontrávamos no Portugal ou no Internacional na Praça
Honório Barreto, no Zé da Amura, nas Palmeiras em Brá, no Santos em Santa Luzia, na Solmar lá do sítio, no Café Pastelaria Império na Praça do Império, perto do Palácio do Governador, ou
no Solar dos Dez. Tudo isto de dia. De noite os encontros eram mais na Meta, no Chez Toi, na UDIB, no Sporting e até no Benfica a caminho da
Sacor.
O caso que vou relembrar passou-se no Solar dos Dez, talvez o melhor
Restaurante de Bissau daquela altura. Mas como já tínhamos almoçado no quartel,
porque o pré não dava para luxos, estávamos num mesa grande, a tomar café na
esplanada e cada um ia contando as suas histórias, com muitas anedotas pelo
meio.
Parece que estou a ver o Marques, que também
tinha chumbado no CSM em Santarém. Na altura já era Regente Agrícola. Mas tinha
chumbado... Era o Delegado em Bissau da sua Companhia. Namorava uma moça que
estava em Medicina ou em Direito, já não me lembro bem. Volto a dizer. Parece que
estou a ver o Marques, a ler em voz alta uma carta da namorada. E ela
contava-lhe - e ele partilhava connosco - a invasão da Faculdade pela Policia e
pela Pide, com muita pancadaria e algumas prisões à mistura.
Era a Crise Académica no seu auge e que nós, longe
de tudo, desconhecíamos por completo. A Emissora Oficial só dava boas notícias,
jornais não havia com regularidade, televisão nem vê-la, telefones nem
sonhá-los e telemóveis ainda não tinham sido inventados… Aquilo desta vez
parecia uma sessão solene. O orador lia a carta pausadamente e nós caladinhos
para não perdermos nada da notícia.
Ao lado, noutra mesa, estava um Major, o
Comandante das Transmissões da Guiné, meu Comandante - uma vez que o
Destacamento do STM onde eu estava integrado em última análise também dependia
deste senhor - acompanhado de sua esposa, que apesar da sua posição importante
e da nossa pequenês, nunca abriu a boca.
O pior foi à tarde. Como eu estava “de
baixa”, passava o resto da tarde, até ao jantar, no meu quarto particular com
mais de duzentas camas. Ouvia-se rádio, jogava-se à sueca e alguns descansavam
porque iam entrar de turno à noite. Aparece o Sargento Caldas - entretanto
infelizmente já libertado da lei da vida - bom homem e bom amigo. Era o meu
Chefe directo. Vinha com mau aspecto. E de chofre perguntou-me onde é que eu
tinha andado, que o Major queria falar comigo e estava muito bravo.
Contei-lhe tudo por onde tinha andado mas
esqueci-me da leitura da tal carta, coisa que poucos de nós valorizámos, porque
desconhecíamos os antecedentes da Universidade de Coimbra e a ebulição
estudantil que havia naquela altura.
E lá fui eu, mas o Major já não estava. Ficou
para o outro dia. Nessa noite nem dormi. O que é que o Major teria para estar
tão bravo como tinha dito o Caldas? De manhã, bem cedinho lá estava eu, com o
braço ao peito, mas de resto devidamente uniformizado e até com as botas bem
engraxadas.
Já eram mais de 10 horas quando ele chegou.
Nem se sentou. Logo ali à entrada da porta dispara, perguntando-me o que é que
estava ali a fazer ontem naquele “comício”. Fiquei perplexo. O que é que aquilo
queria dizer? O que é que eu teria feito de mal? Fiquei sem resposta. Mas lá
terei dito alguma coisa, atabalhoadamente, a tentar relatar o acaso do
encontro. Levei uma rabecada das antigas. E ameaças quanto ao futuro foram as
suficientes. O mato, nas piores condições e nos piores locais, tinha sempre vagas
e estava sempre à espera.
Mais tarde, começou a constar, na caserna,
que o senhor teria algumas ligações à Policia que tinha aquartelamento no Largo
do Colégio Militar, junto à Avenida Arnaldo Shulz, em Bissau, a Policia
Internacional e de Defesa do Estado, a tenebrosa Pide de má memória para o Povo
Português mas também neste caso para o Povo da Guiné-Bissau. Nunca cheguei a
saber se era verdadeira essa dupla função, mas lá que andei atrapalhado isso
foi mesmo verdade.
Tudo se passou sem mais agruras. Mas andei
mal durante muito tempo e com atenções redobradas. É que eu passava naquela
Avenida de vez em quando e, às vezes, os tratamentos ouviam-se cá fora...
A guerra também tinha destas coisas. E é bom
recordá-las para que a memória não esqueça.
Carlos Pinheiro
3 comentários:
Olá Carlos
Não se pode dizer grande coisa.
Fizeste aí um rol interessante da lista de amigos/conhecidos, das suas origens, dos diversos locais onde foram "encontrados".
Sobre isso acho que não é nada de muito diferente do meu caso.
Também por aí estive com colegas de escolas, de incorporação, de cursos, de terras onde vivia e/ou visitava. Sempre eram agradáveis esses momentos.
O périplo pelo cafés e restaurantes também não foi muito diferente do que fiz.
A ronda para conhecimento foi efetuada no quase 1º mês que passei em Bissau, antes de ir "para o mato" e depois de assentar arraiais após o regresso de Piche sempre percorri esses que referes, acrescentando o Oásis, o Ronda, o Pelicano e aí umas duas ou três vezes, o Grande Hotel.
Quanto ao Solar do Dez a ideia que tenho é de que havia a parte do restaurante, um salão ricamente decorado com grandes reposteiros, maioritariamente frequentado pelos oficiais da Marinha e um pátio interior, onde também se serviam refeições (recordo aqui uma "açorda à Sta. Teresinha") mas com mais aspeto de cervejaria.
Relativamente ao sr. Ten.Cor. "Raminhos" pouco posso adiantar para além de que também tivemos alguns "encontros imediatos", um deles com alguma graça, quando houve uma "discussão com diferença de pontos de vista" por causa de "competências".
Hélder Sousa
Caro Amigo Carlos Pinheiro
Também por falares em PIDE, também tenho uma história engraçada com dois elementos dessa polícia, que nem sabia que existiam em Bafatá. Como sempre fazia quando não estava de serviço no turno da 20 às 24h00 saía para dar uma volta pelas tabancas onde existiam bajudas engraçadas e depois tomava um café no Teófilo. Quando seguia pelo meio da tabancas e na direção do QGP, assim denominado a tabanca das "meninas" sinto passos atrás de mim no escuro como breu da noite e como conhecia todos os caminhos de olhos fechados, safo-me das pessoas que me iam a seguir e virou-se o feitiço contra o feiticeiro e de seguido passei a seguidor e vi que eram duas pessoas adultas vestidas à civil. Já sem qualquer temor, voltei para o café do Teófilo e encostei-me numa coluna que existia na entrada e sustentava a cobertura do café, fumando o meu cigarrito com a minha única arma que sempre me acompanhava, que era um chicote com um pedaço de chumbo na ponta. Então para meu espanto chega os referidos adultos e olham para mim com um olhar intimatório. Como não sabia quem eram, ignorei-os simplesmente e vi que se sentaram na mesa de um amigo (de Guimarães. Passado uns minutos esse amigo veio-me chamar para a mesa e a presentou-me ao mesmo tempo que identificou identificou os mauzões "dois senhores da PIDE", ao mesmo tempo que dizia que eu era um bom rapaz e que estava a trabalhar no STM. Então soube o motivo porque me seguiram, sem deixarem de me identificarem como um provocador. Cada vez mais perplexo, pedi desculpa, mas perguntei-lhes se eles fossem seguidos por alguém no meio das tabancas não fariam o que eu fiz. Agora vou explicar o motivo porque me seguiram, constou-se-lhes que um militar de outro aquartelamento, que costumava vir à cidade e frequentava o QGP, e porque não tinha sido bem recebido da última vez que aí estivera, tinha prometido que na próxima pegaria fogo à tabanca das "meninas". Nas suas rusgas por aquela banda e vendo-me seguir na direção dessa tabanca, imediatamente me seguiram. Esclarecida a situação e com a ajuda desse meu amigo e camarada, convenceram-se que de facto eu era um bom rapaz, que só gostava de passear à noite pelo meio das tabancas. O engraçado é que nunca mais os vi.
Gostei de ler.
Faço ideia do susto que apanhou.
Com aquela “polícia “ não se brincava...e quando as aparências iludiam e levavam a um fim menos amistoso, era mesmo para meter medo.
Ainda bem que passou e agora dá para recordar.
Um abraço amigo.
M Arminda
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