O BOATO
Juvenal Amado |
O bom do Sardeira (1) tinha por missão ir
às Duas Fontes (2), local a 6 km do quartel,
com o Unimog, mais conhecido por burro do mato, encher o auto-tanque
de água.
E assim durante muito tempo, logo de manhã, com uma Secção de homens armados, lá ia ele picada fora aproveitando para dar boleia às bajudas (3) que, nisto de andar de carro, estavam sempre prontas. Iam... e depois vinham.
O meu amigo Sardeira usava uns óculos que mais pareciam o fundo de duas garrafas, tal era a grossura das lentes. Mais tarde, no nosso primeiro almoço de confraternização, passados vinte anos, em Seia, reparei que ele não trazia os famosos óculos. Quando lhe perguntei por eles, com ar maroto respondeu-me que os tinha deitado fora, mal tinha saído do Niassa em Lisboa. Verdade ou não, não deixa de ser sempre tema de conversa e brincadeira entre nós, quando nos juntamos.
Unimog |
Mas, voltando atrás no
tempo, este nosso camarada ia encher o autotanque, duas vezes de manhã e duas
vezes de tarde. Assim foram passando os meses e, não se tendo verificado
quaisquer incidentes, ele foi abrandando o cuidado e, de vez em quando, pegava
na viatura e lá ia ele direito às Duas Fontes, sem escolta.
Escusado será dizer que, em situação de guerra de guerrilha, esta atitude era uma tonteira - e era naturalmente assunto de conversa entre nós. Até que ele passou a ir mais vezes sem escolta do que com ela.
Nós, meio a sério meio a brincar, dizíamos-lhe: - “Qualquer dia ainda te lixas!” - e ele respondia a gozar que éramos medricas e que não havia perigo nenhum.
O tempo foi passando. Um dia lá vinha ele a chegar do seu passeio, o Caramba gritou-lhe que ele estava a forçar a sorte. Ele riu-se e disse que não havia azar, ao que o Caramba retorquiu:
Galomaro |
O Sardeira mudou de cor e num riso um bocado amarelo, ainda disse: - “Estás a gozar!”
O Caramba muito sério, na sua forma falar de alentejano dos quatro costados, retorquiu:
- “Não se está vendo? Andas brincando com a sorte!”
À custa desta conversa fartámo-nos de rir, mas a mentira passou a ser uma verdade e nenhum de nós se desmanchou junto dele…
A estória correu o quartel e à boa maneira de quem conta um conto, acrescenta um ponto, a peta alastrou.
O que é certo é que o camarada passou a querer mais segurança e nunca mais lá foi buscar o precioso líquido, sozinho...
Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
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Notas do Juvenal:
Notas do Juvenal:
(1) O primeiro encontro entre nós, passado vinte anos, deveu-se em grande
parte ao trabalho desenvolvido pelo Sardeira que, a par com o Alfredo Chapinhas,
fizeram um trabalho notável para que o almoço se realizasse. Ele veio de
propósito encontrar-se comigo em Alcobaça, para que eu fornecesse os números de
telefone dos camaradas que ainda estavam em contacto comigo.
(2) Duas Fontes: local onde abastecíamos de água perto de Bangacia. Era um
local que inspirava confiança, mas não podemos esquecer que essa mesma
confiança custou a vida a seis camaradas do Batalhão antigo, que ali foram
emboscados.
Bangacia foi também destruída por um ataque durante a nossa comissão. Nós
reconstruímos a povoação com ordenamento tipo Baixa Pombalina, com escola,
posto médico - e o PAIGC nunca mais atacou. Deve ter considerado que era uma
coisa boa a manter para quando a paz chegasse. E tinham toda a razão…
(3) Bajudas (para quem ainda não sabe…): nome dado às moças solteiras da
Guiné.
(4) A “Maria Turra” era a Amélia Araújo, locutora da “Rádio Libertação”
(estação pró-PAIGC que a nossa tropa por vezes sintonizava), angolana de origem, casada
com o militante e dirigente politico do PAIGC, José Araújo, que até ao 14 de
Novembro de 1980 foi um dos altos responsáveis do PAIGC na Guiné.
1 comentário:
Caro Juvenal
Pode-se então dizer que não sendo nada uma "mentira inocente" foi eficaz para amentar os níveis de "prudência".
Por outro lado comprovou-se que nem sempre o boato era uma "arma da reacção"... ou que "feria como uma lâmina"!
Abraço
Hélder Sousa
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