A
GUERRA COLONIAL"
O investigador Miguel Cardina, que recebeu no ano passado uma bolsa de 1,4
milhões de euros do Conselho Europeu para a Investigação para coordenar o
projeto CROME, que aborda as memórias das guerras coloniais, esteve há dias na
Nazaré para apresentar um livro e explicou ao REGIÃO DE CISTER o que o atrai no
estudo da Guerra Colonial.
Colaboro neste semanário há já alguns anos e tive acesso ao texto da entrevista
que reproduzo seguidamente, começando com alguns elementos biográficos do
entrevistado.
Miguel Cardina
Historiador e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra. Recebeu em 2016 a bolsa Starting Grant do European Research Council
(ERC - Conselho Europeu para a Investigação) na qualidade de coordenador do
projeto de investigação «CROME - Crossed Memories, Politics of Silence. The
Colonial-Liberation Wars in Postcolonial Times».
É autor ou co-autor de vários
livros, capítulos e artigos sobre colonialismo, anticolonialismo e guerra
colonial; história das ideologias políticas nas décadas de 1960 e 1970; e
dinâmicas entre história e memória.
REGIÃO DE CISTER
(RC) > Como é que surgiu o interesse pelo tema do colonialismo?
Miguel Cardina (MC) > Surge na sequência do trabalho que desenvolvi
anteriormente. Fiz a formação superior em Filosofia e depois em História, tendo
começado desde logo a estudar o século XX português, nomeadamente nas décadas
de 1960 e 1970. E a Guerra Colonial é o grande acontecimento da segunda metade
do século XX português, embora muitas vezes silenciado.
Esse interesse acabou por dar origem a um projeto, que foi financiado pela
União Europeia e que me confere as condições para desenvolver um trabalho sobre
a memória da Guerra Colonial e das lutas de libertação em perspetiva comparada,
entre Portugal e as antigas colónias.
RC > Ainda há,
digamos, muitos recalcamentos na sociedade portuguesa sobre a Guerra?
MC > Não diria tanto. Para percebermos o modo como a sociedade
portuguesa lida com este tema é interessante fazermos uma retrospetiva
histórica. A seguir ao 25 de Abril, que foi feito por militares e para terminar
com a Guerra, os portugueses passaram a cuidar do seu presente e tenderam a
esquecer um conflito que tinha tido um desfecho negativo e que deixara sequelas
físicas e psicológicas naqueles que a combateram. Isto já para não falar do
retorno dos cerca de 500 mil portugueses que voltam à metrópole.
Há duas vagas importantes: aos 120 mil soldados que combateram em 1974, sem
falar nos 800 mil que combateram nas diferentes frentes desde 1961, há as cerca
de 500 mil pessoas que retornam a Portugal. E há todo um processo de mudança
política que torna o Estado Novo e a Guerra Colonial algo de um passado indesejável.
Isso faz com que Guerra seja um evento difícil de recordar nos primeiros anos
após a revolução. E nos anos seguintes também, porque se queria esquecer a
ditadura e o colonialismo.
Por outro lado, mexer com a Guerra era mexer com a violência colonial, os
massacres, com toda a dimensão disruptiva que as guerras têm e que as
sociedades tendem a querer esquecer. Portanto, só na década de 1990 é que a
Guerra Colonial volta a surgir no espaço público. Dá-se uma monumentalização do
conflito, começam a surgir diversas publicações de ex-combatentes e também uma
certa ideia do soldado como vítima. E isso aparece muito associado ao
reconhecimento do stress pós-traumático como uma realidade.
Hoje vivemos noutro paradigma. Muitos ex-combatentes querem recordar os acontecimentos
e começam a contar as suas histórias. A Guerra do Ultramar tem vindo a ser
falada no espaço público, mas de uma maneira que nós, no projecto,
classificamos como permanências do lusotropicalismo, que foi uma teoria
adoptada pelo Estado Novo, sobretudo a partir da década de 1950, descrevendo o
colonialismo português como menos violento e mais ‘miscigenador” relativamente
aos outros colonialismos.
O que queremos dizer com isto é que o conflito é visto de uma forma que dá
a entender que Portugal foi mais brando na guerra. Além disso, todos os
testemunhos vão no sentido de uma certa estranheza. O País foi levado para uma
guerra não se sabe muito bem porquê e quem regressa sabe que perdemos a guerra,
mas também não se sabe muito bem por que a perdemos.
RC > O
surgimento de tantos blogues e referências digitais com referências à Guerra
torna mais difícil ou mais fácil o trabalho dos historiadores?
MC > Para nós, no projecto, é uma vantagem, porque não estamos a fazer
história da Guerra. Não estamos a retratar o que aconteceu. Estamos a fazer uma
história da memória, de como é que as representações da guerra mudaram no
pós-guerra. Tudo aquilo que venha somar informação de como a sociedade e os
indivíduos viveram a guerra tem interesse, pois é uma fonte. Inclusive, uma
parte do projeto visa aquilo a que chamamos de memórias digitais, que aborda os
blogues e os grupos no Facebook.
Também isso tem vindo a mudar. A lógica de autopublicação fomentou a
memorialização da guerra e hoje o universo dos blogues perdeu expressão, mas há
alguns que mantêm grande dinâmica.
RC > Num estudo
que fez identificou 8 mil desertores da Guerra do Ultramar. De que maneira
essas pessoas foram julgadas pela sociedade?
MC > Cheguei a esse número num projeto que tive anteriormente com a
Susana Martins, e que foi um trabalho muito difícil, pois tivemos de cruzar
informação de muitas fontes de diferente proveniência. Chegámos a um número que
superava os 8 mil, mas que ainda assim peca por defeito. Faltam muitos dados
oficiais. Ao mesmo tempo, esse é um número que tem em conta várias realidades:
há militares que desertavam antes de ir para a Guerra e esse grupo é o mais
expressivo; depois há quem deserte já em África, o que era mais difícil de
fazer; e há um terceiro grupo, os africanos que estão incorporados nas tropas
portugueses.
São universos e tipos de pessoas muito diferentes. A instituição militar
sempre entendeu o acto de desertar como um acto desonroso e houve vários
militares julgados, mas hoje percebemos que a figura do desertor é muito
complexa.
RC > Saber que
se vai liderar um projeto desta dimensão não acontece todos os dias na vida de
um investigador. Como foi o dia em que recebeu a notícia de que a bolsa tinha
sido aprovada?
MC > Estava à espera de uma notícia, porque o projeto tinha passado à
2.ª fase, já tinha feito a entrevista em Bruxelas que consta do concurso e esta
era a segunda vez que concorria. Na primeira candidatura, ano e meio antes,
tinha recebido uma resposta negativa, pelo que quando recebi a aprovação li
várias vezes o documento (risos). É uma bolsa com muito dinheiro, que nos
permite construir uma equipa, o que é muito difícil conseguir na investigação
em Portugal. Somos nove pessoas e vamos ter um filme associado.
Um projecto desta dimensão, que pretende comparar a memória da guerra com
os outros países africanos, só faz sentido com uma equipa destas. A equipa está
dividida em contextos regionais e temos tido grande receptividade nesses
países.
O livro “As Voltas do Passado: a guerra colonial e as lutas de
libertação” [apresentado recentemente na Feira do Livro da Nazaré, que
coordenou com Bruno Sena Martins e que resulta do projeto CROME] foi muito bem
recebido, porque é uma obra com textos de autores portugueses, angolanos,
guineenses, cabo-verdianos, moçambicanos, etc. E isso não é comum. Estamos
sempre a querer trabalhar de forma articulada.
A entrevista que reproduzo foi feita pelo Diretor do “Região de Cister” Joaquim Paulo e foi publicada nesse periódico em 18 de Agosto de 2018.
JERO
1 comentário:
Do que li aqui, tratando-se de um excerto, inclino-me para uma apreciação de que se trata de uma postura serena e assertiva.
E, de facto, a matéria não está esgotada e é bom que possa continuar a ser abordada, de preferência sob vários ângulos, para que possa perdurar mais no tempo.
Abraço
Hélder Sousa
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