quarta-feira, 12 de setembro de 2018

P1055: MEMÓRIAS DAS GUERRAS COLONIAIS


 "PORTUGUESES QUISERAM ESQUECER 
A GUERRA COLONIAL"



O investigador Miguel Cardina, que recebeu no ano passado uma bolsa de 1,4 milhões de euros do Conselho Europeu para a Investigação para coordenar o projeto CROME, que aborda as memórias das guerras coloniais, esteve há dias na Nazaré para apresentar um livro e explicou ao REGIÃO DE CISTER o que o atrai no estudo da Guerra Colonial.


Colaboro neste semanário há já alguns anos e tive acesso ao texto da entrevista que reproduzo seguidamente, começando com alguns elementos biográficos do entrevistado.


  Miguel Cardina

Historiador e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Recebeu em 2016 a bolsa Starting Grant do European Research Council (ERC - Conselho Europeu para a Investigação) na qualidade de coordenador do projeto de investigação «CROME - Crossed Memories, Politics of Silence. The Colonial-Liberation Wars in Postcolonial Times». 
É autor ou co-autor de vários livros, capítulos e artigos sobre colonialismo, anticolonialismo e guerra colonial; história das ideologias políticas nas décadas de 1960 e 1970; e dinâmicas entre história e memória.

REGIÃO DE CISTER (RC) > Como é que surgiu o interesse pelo tema do colonialismo?
Miguel Cardina (MC) > Surge na sequência do trabalho que desenvolvi anteriormente. Fiz a formação superior em Filosofia e depois em História, tendo começado desde logo a estudar o século XX português, nomeadamente nas décadas de 1960 e 1970. E a Guerra Colonial é o grande acontecimento da segunda metade do século XX português, embora muitas vezes silenciado.
Esse interesse acabou por dar origem a um projeto, que foi financiado pela União Europeia e que me confere as condições para desenvolver um trabalho sobre a memória da Guerra Colonial e das lutas de libertação em perspetiva comparada, entre Portugal e as antigas colónias.

RC > Ainda há, digamos, muitos recalcamentos na sociedade portuguesa sobre a Guerra?

MC > Não diria tanto. Para percebermos o modo como a sociedade portuguesa lida com este tema é interessante fazermos uma retrospetiva histórica. A seguir ao 25 de Abril, que foi feito por militares e para terminar com a Guerra, os portugueses passaram a cuidar do seu presente e tenderam a esquecer um conflito que tinha tido um desfecho negativo e que deixara sequelas físicas e psicológicas naqueles que a combateram. Isto já para não falar do retorno dos cerca de 500 mil portugueses que voltam à metrópole.

Há duas vagas importantes: aos 120 mil soldados que combateram em 1974, sem falar nos 800 mil que combateram nas diferentes frentes desde 1961, há as cerca de 500 mil pessoas que retornam a Portugal. E há todo um processo de mudança política que torna o Estado Novo e a Guerra Colonial algo de um passado indesejável. Isso faz com que Guerra seja um evento difícil de recordar nos primeiros anos após a revolução. E nos anos seguintes também, porque se queria esquecer a ditadura e o colonialismo.

Por outro lado, mexer com a Guerra era mexer com a violência colonial, os massacres, com toda a dimensão disruptiva que as guerras têm e que as sociedades tendem a querer esquecer. Portanto, só na década de 1990 é que a Guerra Colonial volta a surgir no espaço público. Dá-se uma monumentalização do conflito, começam a surgir diversas publicações de ex-combatentes e também uma certa ideia do soldado como vítima. E isso aparece muito associado ao reconhecimento do stress pós-traumático como uma realidade.

Hoje vivemos noutro paradigma. Muitos ex-combatentes querem recordar os acontecimentos e começam a contar as suas histórias. A Guerra do Ultramar tem vindo a ser falada no espaço público, mas de uma maneira que nós, no projecto, classificamos como permanências do lusotropicalismo, que foi uma teoria adoptada pelo Estado Novo, sobretudo a partir da década de 1950, descrevendo o colonialismo português como menos violento e mais ‘miscigenador” relativamente aos outros colonialismos.

O que queremos dizer com isto é que o conflito é visto de uma forma que dá a entender que Portugal foi mais brando na guerra. Além disso, todos os testemunhos vão no sentido de uma certa estranheza. O País foi levado para uma guerra não se sabe muito bem porquê e quem regressa sabe que perdemos a guerra, mas também não se sabe muito bem por que a perdemos. 

RC > O surgimento de tantos blogues e referências digitais com referências à Guerra torna mais difícil ou mais fácil o trabalho dos historiadores?

MC > Para nós, no projecto, é uma vantagem, porque não estamos a fazer história da Guerra. Não estamos a retratar o que aconteceu. Estamos a fazer uma história da memória, de como é que as representações da guerra mudaram no pós-guerra. Tudo aquilo que venha somar informação de como a sociedade e os indivíduos viveram a guerra tem interesse, pois é uma fonte. Inclusive, uma parte do projeto visa aquilo a que chamamos de memórias digitais, que aborda os blogues e os grupos no Facebook.

Também isso tem vindo a mudar. A lógica de autopublicação fomentou a memorialização da guerra e hoje o universo dos blogues perdeu expressão, mas há alguns que mantêm grande dinâmica.

RC > Num estudo que fez identificou 8 mil desertores da Guerra do Ultramar. De que maneira essas pessoas foram julgadas pela sociedade?

MC > Cheguei a esse número num projeto que tive anteriormente com a Susana Martins, e que foi um trabalho muito difícil, pois tivemos de cruzar informação de muitas fontes de diferente proveniência. Chegámos a um número que superava os 8 mil, mas que ainda assim peca por defeito. Faltam muitos dados oficiais. Ao mesmo tempo, esse é um número que tem em conta várias realidades: há militares que desertavam antes de ir para a Guerra e esse grupo é o mais expressivo; depois há quem deserte já em África, o que era mais difícil de fazer; e há um terceiro grupo, os africanos que estão incorporados nas tropas portugueses.

São universos e tipos de pessoas muito diferentes. A instituição militar sempre entendeu o acto de desertar como um acto desonroso e houve vários militares julgados, mas hoje percebemos que a figura do desertor é muito complexa.  

RC > Saber que se vai liderar um projeto desta dimensão não acontece todos os dias na vida de um investigador. Como foi o dia em que recebeu a notícia de que a bolsa tinha sido aprovada?

MC > Estava à espera de uma notícia, porque o projeto tinha passado à 2.ª fase, já tinha feito a entrevista em Bruxelas que consta do concurso e esta era a segunda vez que concorria. Na primeira candidatura, ano e meio antes, tinha recebido uma resposta negativa, pelo que quando recebi a aprovação li várias vezes o documento (risos). É uma bolsa com muito dinheiro, que nos permite construir uma equipa, o que é muito difícil conseguir na investigação em Portugal. Somos nove pessoas e vamos ter um filme associado.

Um projecto desta dimensão, que pretende comparar a memória da guerra com os outros países africanos, só faz sentido com uma equipa destas. A equipa está dividida em contextos regionais e temos tido grande receptividade nesses países. 

O livro “As Voltas do Passado: a guerra colonial e as lutas de libertação” [apresentado recentemente na Feira do Livro da Nazaré, que coordenou com Bruno Sena Martins e que resulta do projeto CROME] foi muito bem recebido, porque é uma obra com textos de autores portugueses, angolanos, guineenses, cabo-verdianos, moçambicanos, etc. E isso não é comum. Estamos sempre a querer trabalhar de forma articulada. 

A entrevista que reproduzo foi feita pelo Diretor do “Região de Cister” Joaquim Paulo e foi publicada nesse periódico em 18 de Agosto de 2018.
JERO   



1 comentário:

Hélder Valério disse...

Do que li aqui, tratando-se de um excerto, inclino-me para uma apreciação de que se trata de uma postura serena e assertiva.
E, de facto, a matéria não está esgotada e é bom que possa continuar a ser abordada, de preferência sob vários ângulos, para que possa perdurar mais no tempo.
Abraço
Hélder Sousa