SALIQUINHEDIM…FRENTE A FARIM
Uma história publicada no “Correio da Manhã”(A Minha Guerra) no seu
suplemento de 28 de Julho de 2013 fez com que voltasse a “reencontrar” um velho
camarada dos tempos do H.M.P.-Lisboa (1962-64)e da Guiné (1964-66).
O Aníbal Albino, alfacinha dos
quatros costados, que na Estrela tratávamos por “six/five/ò/laring”(vá-se lá
saber porquê…) ,relata o nosso dramático encontro na Guiné, perto de
Saliquinhedim em meados de Novembro de 1964. O Aníbal era então o Furriel Enfermeiro
da CART. 732, recém-chegada à Guiné, e eu desempenhava idênticas funções na
CCaç. 675, na altura já com a experiência de 4 meses de mato na região de
Binta, a cerca de 20 kms. de Farim.
Eu estava integrado num pelotão da minha Companhia, que garantia uma
“testa de ponte” frente a Farim (na margem esquerda do Rio Cacheu) para uma
operação da CCav. 487 e o Aníbal vinha com a sua Companhia de Bissau para se
instalarem em Saliquinhedim, a 5 kms. de Farim.
Encontramo-nos na noite de 5 de Novembro – conforme registo do “Diário
da 675” – e o Aníbal não exagera quando diz no artigo do “Correio da Manhã”, que
“tremia por tudo quando era sítio”.
A sua Companhia que tinha partido de Bissau, em coluna-auto, via Mansoa-Mansabá-Olossato,
tinha sido violentamente atacada por
duas vezes, resultando dessas emboscadas um morto (*) e cinco feridos. Quando
chegaram junto de nós os militares da “732” vinham de cabeça perdida e
completamente desorientados.
Ainda hoje me lembra do Aníbal me contar que os militares da sua
Companhia tinham recebido as “G-3” nessa manhã e já tinham passado por dois
ataques e muitos nem “a bala na câmara “sabiam meter nas armas que lhes foram
distribuídas. Praticamente a reacção ao fogo inimigo tinha sido feita por um
Sargento do Quadro, com uma metralhadora-pesada instalada numa viatura(!). O
resto da malta tinha-se mandado ao chão à espera que a “trovoada” passasse… A
confusão tinha sido tanta que até as tropas de Saliquinhedim, que vinham
render, tinha feito fogo sobre eles, pois não tinham informação de que iam ser
rendidos nesse dia !!!
Recordo-me ainda do pormenor macabro de ter sido eu, mais o meu
cabo-enfermeiro Martins, que fomos acima de uma viatura buscar o morto da “732”,
para o confiar às tropas da “487”, que regressavam nessa noite a Farim, pois os
seus camaradas nem tinham coragem de olhar para o corpo, já então envolto numa
lona.
Refiro umas linhas do “Diário da 675”(**):« Quase há dois dias sem comerem eles aceitaram como “dádiva” do céu” o
nosso jantar de que prescindimos para lhes oferecer. Pouco a pouco conseguimos
confortá-los e dar-lhes alento».
«Não podiam cruzar
os braços. Tinham que reagir, lutar, vingar os seus mortos e feridos.»
Foi uma longa
noite para eles mas quando chegou o novo dia, apesar de inexperientes, estavam
prontos para voltar à luta.
…
Quando abalaram de
novo nas suas viaturas para render a “487”, e continuar a operação, tinham um
ar resoluto e uma nova confiança. «Obrigado 675», gritaram-nos. «Para a frente
732», incitámo-los nós na despedida.
No que nos diz respeito a operação , que estava prevista para três
dias prolongou-se por mais quatro – uma
surpresa tão desagradável quanto imprevista!
Ultrapassada que foi a operação nocturna de desembargue, bem complicada por sinal, para instalarmos a tal “testa de ponte” para a “487” actuar, passámos a ter como “inimigos” principais: a escuridão da noite, o cacimbo que fazia baixar drasticamente a temperatura, os “colchões” de terra dura e mosquitos infatigáveis sem ligarem ao repelente com que nos besuntávamos!
Ultrapassada que foi a operação nocturna de desembargue, bem complicada por sinal, para instalarmos a tal “testa de ponte” para a “487” actuar, passámos a ter como “inimigos” principais: a escuridão da noite, o cacimbo que fazia baixar drasticamente a temperatura, os “colchões” de terra dura e mosquitos infatigáveis sem ligarem ao repelente com que nos besuntávamos!
Mas na minha memória – mais do que essa semana terrivelmente
desconfortável – o que perdura são os camaradas da “732” e, particularmente, o Enfermeiro Aníbal Albino. Que muitos anos mais
tarde vi a reencontrar na praia de São Martinho do Porto. E, claro está, as
primeiras palavras que trocámos tiveram a ver com a terrível noite da Guiné em
Saliquinhedim…frente a Farim.
JERO
(*)-Identificação do morto em combate
JOÃO ANTÓNIO
BEIJINHO SARDINHA Soldado Atirador nº 107/64, da CART 732, mobilizado no RAL 1,
em Lisboa. Era solteiro, filho de João António Sardinha e de Inácia Maria
Beijinho. Natural da freguesia de Selmes, concelho de Vidigueira. Faleceu em 5
de Novembro de 1964, vítima de ferimentos em combate, na região de Farim, tendo
sido inumado no Cemitério Municipal de Évora.”(elementos transmitidos por José Silva
Marcelino Martins).
(**)- Diário da 675, a pgs. 130.
Com a devida vénia ao "Correio da Manhã", reproduzimos o texto original publicado no suplemento do CM do passado dia 28 de Julho:
4 comentários:
Para esta história de guerra "apenas" me resta deixar um abraço e perceber como o termo camarigo tem tanto sentido!
Joaquim Mexia Alves
O BAPTISMO QUE A CART 732 SOFREU AINDA ANTES DA SUA CHEGADA À ESTÂNCIA DE FÉRIAS DE SALIQUINHEDIM NÃO PODIA TER SIDO PIOR.
NO SEU DESVIO PARA FARIM ACABARIAM POR CONHECER A FORÇA DA PALAVRA SOLIDARIEDADE QUE TANTO GOSTAMOS DE EMPREGAR E USAR AQUI NA TABANCA DO CENTRO, QUANDO EM ESTADO DE CHOQUE, FORAM RECEBIDOS PELOS DE FARIM ONDE ENTÃO O JERO MILITAVA...
ESSA SOLIDARIEDADE FOI DE TAL FORMA SENTIDA, QUE AINDA HOJE, O ANÍBAL ALBINO A CITA.
SOLIDARIEDADE NÃO É PALAVRA VÃ ...
ÉRAMOS ASSIM, OS GUINÉUS !
mm
Boas recordações.
Sobrepõem-se às más, que também as há, mas são as boas que prevalecem.
Como escreve o Joaquim, não há mais palavras para celebrar estes encontros com a memória e de que o 'nosso Jero' é, mais uma vez, protagonista, sem fazer mais do que ser ele próprio. O Jero era assim. O Jero é assim. Amigo, solidário, leal.
Também o Maia tem razão, a solidariedade 'fornecida gratuitamente' foi de tal forma forte e marcante que passados todos estes anos o Aníbal fez questão de referir o episódio e salientá-lo, não se fazendo rogado em revelar o nome de que a solidariedade se 'vestiu' nesse dia.
Abraços
Hélder Sousa
Aos camarigos em geral e ao Miguel Pessoa, Joaquim Mexia Alves,Manuel Maia e Hélder Valério em particular um "muito obrigado" por estarem por perto. Nesta fase da vida em que os "100 anos" se aproximam é particularmente gratificante saber que, além da nossa família biológica, temos os camarigos, os guinéus que estarão connosco até ao último dia.Abraço solidário e até amanhã... JERO
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