Neste texto - há muito publicado
no blogue “Luís Graça e Camaradas da Guiné” e agora recuperado para a Tabanca
do Centro - descrevo a minha chegada a Bissau no navio da marinha mercante Ambrizete, em rendição
individual, bem como as primeiras impressões da cidade, dos seus lugares mais
afamados e da sua fauna humana.
A CHEGADA À GUINÉ E AS
REALIDADES DE UM NOVO MUNDO…
Helder Valério Sousa |
A minha partida para a Guiné ocorreu cerca
das 22 horas do dia 3 de Novembro de 1970, quando o velho Ambrizete rumou à foz
do Tejo com destino a Bissau, navegando com uma inclinação de 7º para estibordo
motivada por uma qualquer má distribuição da carga (constituída, para além de
géneros alimentícios, por material de guerra diverso e sobressalentes para
manutenção).
A viagem correu bem, com mar sem causar
problemas (vaga larga, como nos
explicaram), gozando aqui e ali da companhia dos peixes
voadores que faziam questão de acompanhar e, aparentemente, rivalizar
com o navio.
A aproximação à costa da Guiné deu-se pela
madrugada do dia 9 de Novembro, com todas as sensações que têm sido descritas
por outros camaradas, como a visualização da linha do que parecia ser uma mata
cerrada, o bafo quente e húmido de lá emanado, os sons e os silêncios, tudo
isto ainda mais ampliado pelo facto de estar a nascer o sol em contra-luz em
relação à nossa posição.
Durante a madrugada tínhamos ultrapassado o Carvalho
Araújo, que seguia carregado de militares mas que nos disseram ter tido
um conjunto de problemas (fogo a bordo?) que o fazia navegar muito lentamente.
Deste modo, todos aqueles que seguiam no Ambrizete (6 militares, todos
Furriéis de Transmissões, 3 TPF (transmissões por fios) e 3 TSF (eu, o Nélson
Batalha e o Manuel Martinho)) desembarcámos a meio da manhã desse dia 9,
enquanto que o desembarque do pessoal do Carvalho Araújo só ocorreu no dia
seguinte, dia 10 de Novembro, dia de S. Martinho, o que nos fez ficar com velhice acrescida em
relação a todos os que viajaram naquele barco, nomeadamente os nossos camaradas
de curso e especialidade, Furriéis Milicianos Eduardo Pinto, Luís Dutra
Figueiredo, António Calmeiro e José Manuel Fanha, sendo que, como era sabido,
"a velhice era um posto"!
O episódio do desembarque teve algo que me
marcou e que me deixou de pé atrás, como se costuma
dizer...
Devido à tal situação do posicionamento
relativo dos dois barcos que estavam a chegar ao cais de Bissau, o Ambrizete ficou um
tanto ancorado ao largo para dar a primazia ao Carvalho
Araújo, razão pela qual a passagem dos passageiros do barco para
terra foi feita por intermédio de pequenas embarcações do tipo que lá se usavam
para fazer as cambanças, mas que no nosso
imaginário eram pirogas dirigidas por
nativos, sendo aí o primeiro contacto (desconfiado) com os naturais.
Quando o barquito manobrava na aproximação à
rampa, estando nós naturalmente a um nível mais baixo do que aqueles que se
encontravam no cais, um dos militares presentes procurou saber se "algum
de vós é o Furriel Hélder Sousa?". Após a confirmação de que era eu mesmo,
o militar em causa, que eu vinha substituir, e que já andava desesperado pela
demora da minha chegada (não esquecer que oficialmente parti a 23 de Outubro,
embora só o tenha feito realmente em 3 de Novembro e, sendo das Transmissões, ele sabia que eu já
tinha embarcado) começa aos saltos e aos gritos de “É ele!, é ele!, é
ele!", o que fez aumentar a minha preocupação sobre onde me vinha meter
para suscitar tanta alegria pela partida...
Hoje já não me lembro do seu nome, ele que
fez tanta questão em me acompanhar em todas as voltas que foi necessário dar
para me apresentar no Quartel, de me levar a uns amigos de Vila Franca que me
tinham guardado um lugar para ficar, de me levar a almoçar à messe de
sargentos, etc. A imagem que tenho é a de um macaquinho aos saltos
(era o que me parecia, já que o via de baixo para cima e ele estava acocorado),
feliz da vida por ter encontrado o seu pira e safar-se dali o
mais depressa possível, provavelmente na viagem de regresso do Carvalho
Araújo.
Depois das apresentações fiquei a saber que
os Comandantes da Companhia de Transmissões e do STM (Serviço de
Telecomunicações Militares) eram respectivamente os Capitães Cordeiro e
Oliveira Pinto (excelentes pessoas), que eram cunhados e contemporâneos da
minha (nossa) passagem pelo B.T., no Quartel da Graça, quando fazíamos a especialidade, o 2º Ciclo do
C.S.M., e eles eram Tenentes a fazer o tirocínio para capitães, período de
alguma agitação pois ocorreu no último trimestre de 1969, quando tiveram lugar
as chamadas Eleições de 69.
Igualmente o 1º Sargento que supervisionava o
STM em Bissau e que nos iria instruir - preparando-nos para as tarefas que
teríamos que desempenhar quando fossemos destacados para os postos no interior -
era meu velho conhecido, já que tinha sido ele a orientar o meu estágio
da especialidade em Tancos, na EPE (meu e do Manuel Martinho que
também foi para a Guiné, bem como do Miguel Rodrigues que foi para Angola,
salvo erro, e do Fernando Marques que ficou cá em Portugal, na CHERET).
O camarada que fui substituir deixou-me
depois aos cuidados dos meus conterrâneos vilafranquenses, Furriéis Milicianos
José Augusto Gonçalves e Vitor Ferreira, o primeiro deles meu colega da Escola
Industrial e o outro das tertúlias do Café A
Brasileira, mais parceiro que adversário das partidas de bilhar. Ambos estavam integrados nas Transmissões (nessa ocasião ainda estava em
criação o futuro Agrupamento de Transmissões) e arranjaram um espaço
para me acomodar no quarto que compartilhavam nas instalações para sargentos em
Santa Luzia, juntamente com outro Furriel, de apelido Pechincha. Este último tinha
estado colocado numa Companhia de Caçadores Nativos e estava agora destacado numa
repartição qualquer do Q.G..
Levaram-me a jantar à Meta (já li algumas
referências nos Blogues mas não me parece que lhe tenham dado o relevo que de
facto tinha naqueles finais de 1970). Era um lugar muito frequentado, com uma zona de
Bar, zona de restauração e uma enorme pista de slot-cars (minicarros eléctricos), muito maior que as que conhecia
cá na Metrópole e que era palco
de acesas e renhidas disputas de competição dos vários miniaceleras que por lá
iam gastando o seu tempo e dinheiro.
Após o jantar, uma voltinha para desmoer e
reconhecer os vários locais de interesse, Solmar, Solar
dos 10, Ronda, o inevitável Café
do Bento (5ª Rep.), a casa Espada (das ostras) na rua paralela à
marginal, o Pelicano.
Aqui no Pelicano, quando para me
integrar saboreava a minha Coca Cola com uísque (era um
privilegiado, já tinha tido a oportunidade de beber aquela coisa quando em
1968 estivera em França, Bélgica e Inglaterra), tive contacto
directo com mais algumas das realidades do mundo onde estava a
entrar...
O primeiro foi a sensação estranha de estar
ali na esplanada a ouvir embrulhar lá longe, do
outro lado do grande e largo Geba. Diziam que era em Tite, ou Fulacunda ou
qualquer outro nome que para mim naquela ocasião não assumia personalidade. Mais tarde já não era assim, os nomes passaram a ter depois uma identidade
própria; acho mesmo que havia até uma espécie de hierarquia, no que respeita à
forma como eram identificados pelas dificuldades de vida que lhes eram
inerentes.
Estar ali a ouvir os rebentamentos abafados pela distância e a ver
alguns clarões deu logo um arrepiozinho na espinha,
com aquele misto de temor e de ansiedade que nessas ocasiões nos assaltam, mas
também com um pensamento de solidariedade e angústia pela impotência de quem só
pode assistir e não intervir.
O segundo contacto foi mais do
género de constatar a degradação moral que a permanência em situações daquelas
podia produzir em espíritos mais fracos. Já se falava do que acontecia no
Vietnam com os soldados americanos consumindo droga para resolver os seus
problemas mas ali no Pelicano não foi esse
o caso. Tratou-se apenas do facto de que em determinado momento um desgraçado
qualquer acercou-se da mesa onde estávamos e procurou vender-nos uma fotos
"de gajas nuas".
É claro que recusámos mas fui depois esclarecido de
que não se tratava de "gajas" mas sim de "uma gaja", a
própria mulher dele, a quem ele (diziam que era um fulano já bastante apanhado
do clima) enviava fotos que tirava a si mesmo sem roupa e pedindo que
ela lhe enviasse fotos do mesmo jeito, que ele depois reproduzia e tentava
vender.
Fiquei bastante impressionado com aquela
demonstração prática da alienação a que o clima de guerra e o consequente
improviso da vivência podiam produzir em seres humanos e jurei a mim mesmo que
haveria de sair da Guiné são de cabeça e mais determinado em contribuir para as
mudanças inevitáveis que haveriam de ocorrer na nossa sociedade.
Hélder
Valério Sousa
Ex-Furriel
Mil Transmissões TSF
Foto 2 - © lifecooler.com. Todos direitos reservados
Fotos 3, 4 e 5 - © Agostinho Gaspar. Todos direitos reservados
7 comentários:
Bom relato. Gostei. Mas permite que faça dois pequenos reparos. O Dia de S. Martinho era e continua a ser a 11 de Novenbro. E quanto ao Carvalho de Araujo não ia mais devagar. Ia na velocidade dele que era sempre muito branda. Não era por acaso que ele demorava 9 dias enquanto que o UIGE, o NIASSA e os outros demoravam 5 ou 6 dias. Desculpa, lá qualquer coisinha. Um abraço e até 4ª.Mas gostei mesmo do relato.
Boa noite meu Furriel Hélder Sousa
Gostei da tua história. Sem querer "vi-me" a passear contigo na noite de Bissau. Delicioso o pormenor do vendedor de fotografias de "gajas" nuas.
Grande abraço e fico à espera de mais uma das tuas histórias.
Saudades de Alcobaça.
JERO
Meu caro Helder também gostei do teu relato da viagem bem como ficaste tão "agradavelmente" impressionado com o trassado urbano. Não conheçi bem Bissau uma que quando desembarque fui logo para o Comere. Depois como o pré recebido por altura do embarque mal sobreviveu ao período pré embarque bem como a viajem não sobrou para visitas mais aprofundadas ao bares cafés da moda. Um abraco
Caros amigos, aqui deixo algumas indicações complementares.
O Carlos Pinheiro tem razão. O S. Martinho era e é a 11 de Novembro. O que falta na frase é a palavra "véspera".... com ela fica tudo certo!
Quanto à "velocidade" do "Carvalho Araújo" pois lá seria assim como dizes, mas que ouvi falar em "fogo a bordo" isso ouvi.
E não é preciso desculpar coisinha nenhuma, as correcções são para se fazerem!
Quanto ao "passeio por Bissau", pois ainda houve mais umas "descobertas" e outros locais de referência que foram visitados e/ou usufruídos depois. Por isso, caro JERO, fico contente que te tenha ajudado nessa volta de recordações mas também te digo que mesmo agora, eu próprio ao ler este pequeno relato, não deixei de me "transportar" para lá.
Quanto ao Juvenal.... bem, meu caro amigo, foi realmente uma pena que não tivesses podido "viver" um pouco mais da cidade. Vivia-se claramente um clima de guerra, por todo o lado se viam militares fardados (muitos à civil), patrulhas armadas, mas a vida fervilhava, com imensos naturais circulando e tentando vender os seus produtos e haviam também vários civis. Claro que não tinha a pujança duma Luanda ou Lourenço Marques de então, mas, à sua escala, tinha um "pulsar" muito superior a inúmeras cidades e vilas do nosso Portugal, dito Metropolitano.
O périplo pelos restaurantes e "locais de repasto" está curto, são mais do que esses, mas mais do que os locais eram as próprias comidas e/ou petiscos que nos vem à memória.
Abraços
Camarada Helder de facto Bissau era sítio que conheci superficialmente era desconfortável para mim. Sujeito aos adidos onde aproveitavam os desgraçados vindos ou trânsito para lá para os por a fazer todos tipos de servicos. Sem alojamento pois ficávamos mas casernas onde tínhamos um colchão com limpeza mais que duvidosa não nos era certo que não tivesse que encontrar outra cama na noite seguinte. Nestas condições e facilmente de esperar que só não iamos a pé para o mato porque nos era impossível
Mas tem graça contar que quando vim para Bissau de férias para apanhar o avião , tive uma visita guiada do meu amigo de juventude Zé Antônio que se lembrou de calçar uns sapatos que não eram da ordem. Resultado uma patrulha da PM passou reparou e meteu-nos no jeep e assim acabou o passeio. No outro dia viajei para cá.
Mas gostei de ler porque é como consultar as páginas amarelas na vez ir pelos dedos vamos com os olhos pelo o teu relato. Um abraco
Caro amigo e companheiro d'armas,
Excelente Estória!... então aquele que tentava ganhar algum vendendo as fotos da própria mulher (ou não) diz bem da situação de setress vivida naquela terra, ainda que não fosse zona operacional, quanto ao sargento do STM não se chamava o sarg. Caldas? Se era esse, (já falecido) era uma pessoa cá da terra (Vila Fria - Viana do Castelo e que me ajudou quando da minha chegada a Bissau no dia 27JAN1972 sendo encaminhado no dia seguinte para o Quartel em St Luzia para frequentar o estágio de radiotelegrafista. fiquei a partir daí a frequentar a casa do Sarg. Caldas e a pernoitar. Foi de facto um grande amigo, mas depois começou a faltar-me os "Pesos" intercedi junto dele para que a minha ida para a CART 3494 sedida no Xime se realizasse o mais breve possível o que veio acontecer no início de Março do mesmo ano. Prono amigo, um grande abraço!.
Só para dizer que me esqueci de referir o meu nome, aí vai: A. Sousa de Castro 1º cabo radiotelegrafista - Xime, Bambadinca e Mansambo - 27JAN71/03ABR74
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