domingo, 21 de dezembro de 2025

P1566: UM CONTO DE NATAL

                                         ENCONTRO  DE  NATAL

Que porcaria de vida, pensou ele com os seus botões.

Afinal era tão bom a dar conselhos e não os conseguia aplicar na sua vida.

Tinha tentado controlar tudo tanto e tão bem, que acabou por fazer o vazio à sua volta e nada mais lhe restava a não ser um pouco do seu orgulho e teimosia em viver assim.

Nada lhe faltava financeiramente e até tinha muitos amigos.

Quando pensou nos amigos sorriu interiormente porque tinha bem a noção de que os amigos que tinha, nada tinham a ver consigo, pois eram fruto apenas da vida dispersa que levava e, verdadeiramente, se precisasse deles nenhum apareceria.

Nem a família lhe restava, porque ao tentar controlar tudo e todos, a mulher e os filhos tinham acabado por se afastar de si.

Afinal tinha tudo e… não tinha nada.

Era dia vinte e quatro de Dezembro, e a véspera de Natal fazia-o sentir-se ainda mais sozinho e desamparado.

Longe iam os tempos em que em família celebravam o Natal com paz e alegria, mas agora tudo isso era apenas recordação.

Já que assim é, pensou ele, vou jantar a um bom restaurante, comer e beber do bom e do melhor e depois… depois volto para casa sozinho, claro.

Telefonou para o restaurante a marcar mesa para jantar e ficou um pouco incomodado quando lhe perguntaram se a mesa era só para uma pessoa, mas não pensou mais nisso.

Vestiu-se a preceito e saiu para o frio da rua, rumo ao restaurante.

Entrou no restaurante e indicaram-lhe a sua mesa

Sentou-se e reparou que na mesa ao lado estava outro homem sozinho também.

Apetecia-lhe muito meter conversa com ele, mas não encontrava motivo para tal

A certa altura um papel qualquer caiu da mesa do seu “vizinho” e ele aproveitou para chamar a atenção do outro para isso.

O “vizinho” agradeceu e isso deu azo a conversarem um pouco sobre várias coisas, até à constatação de que afinal estavam os dois sozinhos na noite de Natal

Convidou o outro para a sua mesa e ele de pronto aceitou.

A conversa foi fluindo e o seu colega de mesa disse-lhe que estava sozinho na vida, sem família, e inevitavelmente acabaram por falar do Natal, referindo o outro, no entanto, que estava com uma certa pressa pois queria ir à Missa do Galo, que era uma tradição sua desde menino a que não queria faltar.

Ele respondeu de imediato que dantes também ia sempre a essa Missa e então o outro convidou-o para irem juntos nessa noite.

Sem perceber muito bem porquê acedeu ao convite, e depois de jantarem saíram para a rua em direção a uma igreja que ficava ali perto.

Entraram e deixaram-se ficar pelos bancos logo à entrada da igreja.

Vários sentimentos tomaram conta dele à medida que a Missa avançava, e deu por ele a pensar que se sentia ali muito bem e com umas saudades imensas da sua família.

Fez um esforço para reter as lágrimas e deixou-se envolver por aquele momento.

De tal modo estava enlevado pelo momento que não se apercebeu que a Missa tinha acabado e o seu novo amigo olhava para ele à espera de uma qualquer resposta da sua parte.

Sentiu então uma mão no seu ombro e ao voltar-se para ver quem era, deu com a cara da sua mulher que, acompanhada dos seus filhos, saíam da Missa naquele momento.

Os filhos abraçaram-no com força e ele, desta vez, não conseguiu reter as lágrimas que lhe correram pela cara abaixo.

A sua mulher perguntou-lhe então se estava sozinho e, perante a sua resposta afirmativa, disse-lhe que ela e os seus filhos gostariam muito que ele fosse lá a casa cear nesse dia.

Surpreendido disse logo que sim, mas referiu que tinha aquele recente amigo que também estava que estava sozinho naquela noite.

Claro que o convite de imediato se estendeu ao amigo recente, que de pronto aceitou, sem se fazer rogado.

Já em casa, sentados à mesa, antes de começar a ceia a sua mulher pediu-lhe para ele fazer uma pequena oração.

Envergonhado e tímido disse então: Obrigado, Jesus, que hoje me trouxeste para o presépio da minha família e me deste mais um amigo, rompendo assim a minha solidão.

Numa certa gruta em Belém, dois mil anos antes, que agora se faziam presente, Jesus, Maria e José sorriam felizes com o Natal daquela família.

Joaquim Mexia Alves

domingo, 16 de novembro de 2025

P1560: MAIS UM DIA NA VIDA DE UM COMBATENTE

A MATA

Caminhas, sentindo a pele molhada, quase pegajosa, por causa daquela constante humidade, por causa daquele calor sufocante.

Dentro de ti há um misto de medo e de determinação, que vai obrigando o coração a bater mais depressa, praticamente compassado com cada passo que dás.

A mata envolve-te, árvores altas, arbustos baixos, coisas que deveria ser lindo ver, não fossem as circunstâncias em que estás envolvido.

Olhas para trás e vês os teus homens que te seguem, uns com um semblante apreensivo, outros com uma calma aparente.

Querias poder transmitir-lhes paz e serenidade, mas sabes que também tu não estás tão calmo e sereno como aparentas estar.

À tua frente apenas o guia, um guineense, filho da terra, em quem confias para te guiar mata adentro.

Por um breve momento voltas a casa dos teus pais, à tua vida anterior que agora parece tão longe, e um tímido sorriso chega à tua boca, e deixas-te levar pela saudade.

Abanas a cabeça para sair desse torpor, pois sabes bem que ali, naquela mata, a distração pode ser fatal.

Queres olhar para além da vegetação que ladeia o trilho em que caminhas, mas se há espaços em que consegues ver mais longe, a maior parte do tempo apenas caminhas quase sem ter a noção certa do que te rodeia.

Levantas a cabeça, enches o peito, endireitas-te porque, caramba, és tu que tens que dar o exemplo, é a ti que os homens devem seguir com confiança e esperança.

Cada um deles, ao longo destes meses já passados, tornou-se num amigo teu e preocupa-te mais o seu bem estar naqueles tempos difíceis, que o teu próprio bem estar.

Sentes que deves a cada um deles a promessa a cumprir de os fazer regressar a todos ao aquartelamento primeiro, e depois, quando for tempo disso, regressar à casa que deixaram lá longe, ou até mais perto.

Vais ouvindo os barulhos da mata, o vento nas árvores, os animais que “falam” uns com os outros, os cheiros que já vais conhecendo bem, e continuas avançando como que a dizer que aquela mata agora é tua e de mais ninguém.

De repente percebes que um silêncio profundo se instalou.

Não se ouve nada, nem vento, nem animais, parece que até os cheiros deixaram de cheirar.

Numa fracção de segundo tomas consciência de que algo está errado, e gritas para os teus homens se prepararem para aquilo que vai acontecer.

Os cheiros regressam, mas são cheiros de pólvora.

Os animais já não “falam”, mas ouvem-se os gritos dos homens e a “voz” das armas.

Num instante, que parece uma eternidade, tudo termina.

Olhas apreensivo para todos e todos te devolvem o olhar, alguns com o medo espelhado nos olhos, outros com um olhar de alívio imenso.

Olhas para o céu, por entre as árvores, e tu, que nem costumas rezar, pensas apenas: Obrigado, meu Deus!

Marinha Grande, Novembro de 2025

Joaquim Mexia Alves