sexta-feira, 30 de outubro de 2015
quarta-feira, 28 de outubro de 2015
segunda-feira, 26 de outubro de 2015
sexta-feira, 23 de outubro de 2015
P711: UMA DATA INESQUECÍVEL
O
EMBARQUE NO UIGE, HÁ 47 ANOS
23
de Outubro de 1968, 4 da tarde. Estava
no convés do UIGE a ver o mar largo, o mar azul e o céu da mesma cor, a pensar
onde é que estava metido e para o que é que estaria guardado.
Logo
de manhã, cedinho, uma camioneta foi aos Adidos buscar-nos – éramos pouco mais
de uma dúzia em rendição individual – de saco às costas a caminho do cais.
Já lá estava formado o BCAÇ 2856, oriundo do RI 15 de Tomar e bem assim mais um
Pelotão da PM. Havia
uma banda militar a abrilhantar a despedida e, em local próprio, estavam
presentes altas patentes militares.
As senhoras do Movimento Nacional Feminino,
também presentes, afadigavam-se a distribuir um maço de cigarros e um isqueiro
aos que iam subindo a escada.
O
resto, a maioria do pessoal no cais e nas varandas, eram familiares dos que iam
partir, a acenar os seus lenços brancos de despedida e a desejarem que tudo
corresse bem, muitos com a lágrima no olho, o que se compreende.
Logo
que me foi possível fui visitar o meu camarote, que era enorme. Mais de
seiscentos beliches, bem arrumadinhos, à esquadria, em madeira de pinho, lá bem
no fundo do porão para não enjoarmos muito.
Ainda
antes do almoço tive que ir à enfermaria do barco continuar um tratamento que
já andava a fazer há alguns dias e aí constatei um bom serviço.
Depois
foi o almoço. Naquela sala grande que permitia que víssemos o mar, tanto a
bombordo como a estibordo, dados os balanços do barco que era de algum modo
desproporcionado entre o comprimento que era grande e a largura que não era
tanta. Mas era uma boa sala e a comida, não sendo nada de especial, também se
comia. O apetite naquele primeiro dia é que não era grande.
À
tarde, houve uma passagem por um bar onde se vendia uma cerveja holandesa,
daquelas grandes, como nunca tínhamos visto.
Depois
foi o jantar na mesma sala e muitos de nós, logo a seguir, descemos aos nossos
aposentos porque o final do dia começava a estar fresco.
Lá
em baixo, no tal camarote, o cheiro era insuportável, a luz era pouca mas os
batoteiros profissionais já tinham a banca armada para limpar as carteiras aos
mais desprevenidos.
A
noite foi caindo, mas lá em baixo era sempre noite cerrada porque, mesmo de
dia, o sol só lá entrava pela pequena boca do porão.
Foi
assim o primeiro dia duma comissão que durou mais de vinte e cinco meses.
Carlos
Pinheiro
23.10.15
P710: DICAS PARA PESQUISAR NO BLOGUE
Deixamo-vos aqui alguns conselhos que vos poderão ajudar a pesquisar assuntos no blogue. Este poste irá sendo actualizado quando tal se justificar.
Poderás ter sempre acesso ao mesmo clicando na imagem que a partir de agora irá estar disponibilizada na coluna da direita. A imagem que mostramos aqui ao lado.
A Tabanca do Centro
terça-feira, 20 de outubro de 2015
P709: DO LÚCIO VIEIRA, UMA HISTÓRIA REALMENTE SURREAL...
SUBMARINO
À VISTA!
Até
no desenrolar dos dramas mais pungentes emergem, com alguma frequência,
pequenos oásis de balsâmica voluptuosidade, preciosas gotas de água, que se
libertam das nuvens da vida e nos refrescam o escaldante quotidiano, pautado
pelas dores que sempre resultam das tragédias. Também no seio dos conflitos
armados desabrocham, por vezes, essas pequenas e decisivas pérolas, que nos
ajudam a refazer o debilitado estado de espírito e nos criam uma reserva de
revigorante resistência aos sucessivos assaltos de uma sorte mais madrasta do
que a madrasta da Cinderela. Chega. Nada melhor do que contarmos, sem mais
delongas, o insólito episódio, ocorrido algures nas margens de um caudaloso rio
africano e tendo como cenário um diminuto cais, junto às pré-históricas instalações
de um pequeno destacamento militar, algures nas entranhas da Guiné, em meados
da longínqua década de 1960.
Manhã
cedo – pouco passaria das sete e meia – de um dia já a aquecer e a prometer
mais uma escaldante jornada, em tudo igual às que habitualmente pautavam
aquele, quase esquecido, reduto de uma reduzida unidade de Engenharia. A
capital não distava muitas léguas e o local, quase inacessível por terra,
alcançado apenas por tosca e estreita estrada, era classificado, à época, como
um reduto seguro, pouco susceptível de se apresentar como alvo de ataques
inimigos.
Atracada,
uma tosca jangada, de motor assustadoramente periclitante – na ausência de uma
mais sofisticada LDM da marinha - aguardava a chegada de uma qualquer coluna de
veículos em trânsito, que ali necessitasse efectuar a travessia do largo curso
de água. Pelo espaço em redor, após um reconfortante pequeno-almoço, os rapazes
desentorpeciam as pernas, puxavam umas fumaças nos cigarros americanos,
trazidos de Bissau e preparavam-se para mais um dia monótono e arrastado, igual
aos restantes dias da monótona e arrastada comissão de serviço.
Uma
pasmaceira, aquele restar por ali, entre as refeições, umas partidas de sueca,
umas mornas e coladeiras na rádio, umas revistas com gajas nuas, as sessões de
anedotas, os aerogramas para a Maria, algumas fotografias e, quando calhava,
três ou quatro viaturas, para enfiar na jangada e transportar para a margem
contrária.
Perdiam-se os olhos na imensidão do rio, pela
cinzenta mancha de bolanha, que quase cercava as pequenas barracas, forradas a
chapa de zinco, que o destacamento habitava; pelo renque de árvores –
bissilões, na sua maioria – que ornavam a estrada na margem norte do rio, a
dezenas de metros de distância, do outro lado onde os combates se iam tornando,
cada vez com maior intensidade, um acontecimento diário.
Mais
a sul, por entre os restos de neblina que se elevavam da bolanha, os olhos
ainda distinguiam a enorme mancha verde-escura do tarrafo que, da margem virada
a poente, se alongava até perder de vista, para as bandas do mar. Dois ou três,
dos homens do destacamento, ocupavam-se entretanto, junto ao cais, na recolha
das armadilhas, deixadas no rio na noite anterior. Havia sempre peixe que
optava por não dormir e o que buscava o engodo, nos engenhos de rede; habitualmente dava para uma refeição à pequena guarnição do destacamento.
De
pé, encostado à tosca viga de palmeira-dendém, num dos cantos do alpendre do
polivalente refeitório-secretaria e sala de convívio, o alferes que comandava o
destacamento observava, a espaços, a paisagem em redor, por vezes de binóculo
em punho, com o olhar atento e perscrutador, que se exige à suprema
responsabilidade dos lideres, a quem compete zelar pelas vidas dos homens sob o
seu comando e dos haveres, que o estado português confiara à sua guarda.
Pese
embora o facto de, por aquelas bandas, jamais ter havido notícia de presença
inimiga, o homem sabia que não podia baixar a guarda. Quando menos se espera… E
recordava, amiúde, os episódios lidos e relidos, sobre guerras distantes ou
passadas, nos quais se dava conta das surtidas traiçoeiras, dos audaciosos
golpes furtivos e das mil e uma artimanhas, que o génio dos grandes cabos de
guerra sempre souberam engendrar, para colher o inimigo de surpresa. E também
da importância estratégica de destacadas zonas do globo, locais cirurgicamente
nevrálgicos para o rumo dos conflitos.
Assim,
aquele perdido posto militar, encravado entre a bolanha e o largo rio, bem
podia ser – quem sabe - o seu estratégico rochedo de Gibraltar, ou algo
semelhante. Por isso o nosso alferes não baixava a guarda. Cônscio da
importância de uma observação constante e minuciosa, o homem queimava as
pestanas, observando metro por metro, litro por litro, as margens e o leito do
rio, que na sua frente se abriam. Com ele, ficasse o inimigo a saber, não
contassem para menosprezar os perigos, muito menos para se entregar ao desleixo
da rotina, que a experiência lhe dizia ser sempre má conselheira.
Um
homem, enfim, ciente da sua responsabilidade e da transcendência da missão que
até ali o levara; àquele pasmado e frustrante longe de tudo, perdido entre
nenhures, onde, habitualmente, o mais emocionante, do arrastado quotidiano, era
a passagem, no seio das colunas militares, de uma ou outra bajuda, à boleia. No
seio, foi o que atrás se escreveu, porque nos ditos das moçoilas, rijinhos e
ali ao léu, vulgarmente designados por “mama firmada”, já a rapaziada ia,
despudoradamente, e sempre que o ensejo se proporcionava, aquecendo as
manápulas, naquele tão cativante, quanto emotivo e patriótico, exercício de
acção psicossocial.
Por
entre a onda de espuma que a sua passagem levantava, erguia-se sobre ele, na
vertical e a cerca de um metro acima da água, hirto e misterioso, um outro
objecto, igualmente redondo e escuro, a fazer lembrar um vulgar tubo de
canalização. “Diabo, se aquilo não parece um submarino…”, cogitava o intrigado
graduado, de cenho franzido e sentidos alerta. Voltou a mirar o estranho
objecto que sulcava as águas, bem no meio da corrente, a uns bons cem metros da
margem.
Atarantados,
os rapazes corriam, desordenadamente, para o interior dos barracões, em busca
das G3. Pelo caminho, um ou outro, de mente menos confusa, ia-se deitando a
matutar que ideia seria aquela de enfrentar um submarino com umas reles
espingardas automáticas, mais umas pobres granadas, que tanta falta faziam para
as radicais pescarias do peixe mais graúdo. Mas pronto, o alferes é que tinha
os livros; por aquelas bandas, ainda era quem mandava na guerra. Entrincheirado
com a jangada, o destemido comandante da guarnição abria fogo de rajada sobre o
“submersível inimigo”.
Só
podia ser inimigo, já que a pelintra marinha de guerra nacional ainda não
conseguira orçamento para tais luxos. Porém, o PAIGC ainda menos. Era pois,
seguramente, um vaso de guerra de leste, da União Soviética, que todos sabiam
estar de panelinha com os movimentos guerrilheiros. “Fogo, fogo nele!”, gritava
o homem, qual Rommel no deserto, qual Napoleão antes da debandada em Waterloo,
qual Nuno Álvares em Aljubarrota ou, mais adequadamente, qual Mouzinho em
Chaimite. As balas – apenas as dele, adiante-se – tracejavam as águas,
levantavam cogumelos de espuma, enquanto por ali, deitados no chão, em posição
de fogo, os homens se entreolhavam, de expressões idiotas, sem entender
patavina da situação.
“Aquilo é um submarino! É ou não é, malta?”, interrogava
ele, aos brados, num esforço de autoconvencimento. “É, é, meu alferes! Vê-se
bem…”, respondiam os homens, confusos e sem coragem para contrariar o agitado
superior. “Fogo nele! Afundem os gajos!” Relutantes, os subalternos lá iam
disparando uns tiros dispersos, que aquilo de estar ali ao desvario a atirar
para o boneco, não lhes cabia lá muito na cachimónia.
O
homem já se via - mais do que numa qualquer e banal entrega de medalhosas
distinções, no Terreiro do Paço - nos próprios salões do palácio de Belém,
altivo, impante, solene, distinto, em farda de gala, na presença das mais altas
figuras da nação. E depois – oh, subida glória! – recebendo, das mãos do
venerando chefe de estado, uma qualquer comenda, das várias com que o patrono
das ordens honoríficas habitualmente ornamenta o pescoço e o ego dos nossos
mais distintos eleitos. Depois, como corolário, talvez o nome numa rua da sua
vila natal, quiçá de vilas e cidades de norte a sul do país, e a inevitável
promoção por distinção que, unanimemente, as altas chefias forenses não deixariam
de lhe proporcionar.
Que
subida honra, que glória, que página, nos anais onde se canta a imortalidade
dos heróis. Caramba! Não é todos os dias – nem, porventura, em todas as
guerras – que se abate, sem remissão, ou se aprisiona, um submarino inimigo,
recheado de uma tripulação amedrontada e rendida à heroicidade de meia dúzia de
bravos militares portugueses. De Engenharia. Ainda por cima, homens da
Engenharia!
Toda
a pequena guarnição estava, pois, prestes a protagonizar um feito único nos
anais da história militar lusíada. Uma epopeia que contariam aos filhos e
netos, os quais, orgulhosos do apelido e do sangue herdados, haveriam de se
rever nela por incontáveis gerações. “Atirem, não o deixem escapar!”, e os
rapazes, mais para evitar reprimendas do que para confrontar a ameaça
navegante, lá iam despejando carregadores, para aquele intruso flutuante que,
oriundo por ventura dos confins soviéticos, ali lhes calhou em sorte, por certo
numa missão de solidária “mãozinha” ao inimigo. Uma, duas rajadas. O arrojado
alferes não descansava. Depois, granada na mão, cavilha arrancada com um gesto
largo e decidido e o lançamento do engenho para bem longe, nas águas do rio.
À
boca pequena comentava-se: “O nosso alferes não ‘tá bom da cabeça”. Então
“aquilo” estava a ir ali a mais de cem metros de distância… quem é que o
alferes pensava que era: “campeão do lançamento do martelo, ou quê?”
Entretanto, mesmo ali frente ao cais, com um repentino remoinhar das águas, o
“vaso de guerra inimigo” inverteu o “leme” a estibordo e parecia querer rumar a
montante, de onde havia pouco surgira.
“Está
com medo, rapazes: ele está com medo. Vai voltar para trás! Fogo, não o deixem
fugir!” E as armas voltaram a troar, rasgando de novo a quietude da manhã. E
que manhã! Ciente agora que o matreiro submersível tentava escapar, o homem
lembrou-se que, no reduzido espaço que servia de paiol, repousava a um canto
uma metralhadora ligeira. Lá estava, havia muito, para o que desse e viesse. “A
Dreyse, tragam a Dreyse!”.
Lesto,
o cabo e um soldado ergueram-se, entreolharam-se por momentos e partiram numa
corrida, desaparecendo no interior das instalações. Quando voltaram, de
metralhadora em punho e uma braçada de carregadores a caírem dos braços,
deixaram a arma nas mãos decididas do alferes e aprestaram-se para o municiar.
Da
ponta da jangada, já sobre as águas, a Dreyse iniciou então o ritmado e
mortífero concerto. As balas sulcavam as águas e atingiam certeiramente a
misteriosa “embarcação”, ante o eufórico frenesim que agitava o bravo oficial.
Fosse por acção das balas, ou por capricho da corrente do rio, o manhoso
“submarino” inverteu de novo a rota e voltou a navegar para jusante, rumando,
tranquila e suavemente, para a foz. Ficava já fora do alcance do fogo lançado
da margem e parecia ir perder-se para lá da curva frente ao bosque de
palmeiras, na viagem que o levaria ao oceano.
As
armas calaram-se. Uma densa e negra nuvem formava-se agora, nos olhos e na
mente do ofegante comandante do destacamento de Engenharia, aquartelado naquela
perdida margem de rio. As honrarias, as comendas, os 5 jantares e discursos e
as ruas com o seu nome esfumavam-se assim, mais depressa do que o fumo que se
evadira dos canos das armas. Oh, glória tão efémera e vã! Oh, história tão
ingrata, que assim lhe iria olvidar o nome. Que dia aquele, de tanto fervor
patriótico e de tanta alma guerreira, transformados, ingloriamente, na mais
redundante e decepcionante manobra militar, alguma vez encetada em terras da
Guiné.
Os
deuses, os tais do Olimpo, deviam mesmo estar loucos. Oh, como os reveses
enchem, tanta vez, as guerras de infortúnio. Ia assim o homem cismando,
tentando refazer-se dos amargos de boca, resultantes da frustrante acometida.
Acalmara-se um pouco. Acendeu um cigarro e encaminhou-se, cabisbaixo e de cenho
franzido, para o recato das instalações. Necessitava de um revigorante whisky,
para encarrilar as ideias.
No
exterior, ainda aturdidos, os homens olhavam-se, acendiam igualmente cigarros
e, entre o encarrilar de ideias e a sequente procura do revigorante whisky,
quedaram-se, por momentos, a matutar, que raio de mosca teria mordido ao
alferes, para desatar a ver submarinos e a despejar quilos de munições, num
pobre e inofensivo tronco de bissilão que, inadvertidamente, entendeu
entregar-se aos prazeres da navegação no dia errado, no rio errado e na hora
errada.
O
perturbado alferes, esse entretanto e enquanto via esvaírem-se os sonhos de
glória e imortalidade, de olhar lançado ao alto e pensamento embargado pela
emoção, justificava a si próprio o desaire, citando – como, de resto fica bem
em situações tão dramaticamente solenes, como aquela – as palavras do poeta:
“malhas que o Império tece…” Perdão; tecia.
Em
rodapé, aqui - como preito de homenagem ao avisado bom senso - se regista o
alívio da restante guarnição, pelo facto de, na balburdia gerada pelo fragor da
insólita “peleja”, o inefável e confuso alferes nunca se ter lembrado de, via
rádio, pedir o apoio dos T-6 da Força Aérea, ou dos patrulheiros da Marinha.
Valeu esse lapso porque, para ridículo, já tinham de sobra para contar…
Lúcio Vieira
Ex-Furriel
Miliciano do
BCAV 790 /
CCAV 788
Guiné
1965/1967.
sábado, 17 de outubro de 2015
P708: NA RESSACA DE UMA TRAGÉDIA
MALDITO MAR
O naufrágio ocorrido há dias na entrada da barra da
Figueira da Foz que causou cinco mortos trouxe-me à memória os gritos
lancinantes que ouvia na minha juventude vivida ali mesmo no Largo da Má
Língua, onde nos invernos mais rigorosos os botes e as bateiras repousavam
serenos, fugidos das ondas alterosas que nas marés mais fortes lambiam as
portas das nossas casas. Corriam os anos cinquenta e os naufrágios dos pequenos
barcos de pesca costeira e também das traineiras ocorriam com alguma infeliz
regularidade.
Numa vila eminentemente piscatória a esmagadora maioria
dos meus amigos de brincadeira e companheiros de escola provinham de famílias
de pescadores e desde cedo me habituei e aprendi a estimá-los e a respeitar a
tão ingrata profissão de seus pais.
Mantenho, felizmente ainda hoje, todas as
amizades de então, feitas na melhor altura das nossas vidas de rapazes livres,
independentemente dos percursos de vida de cada um de nós.
Se no meu tempo de miúdo de dez anos grande parte da
população dependia da pesca, o mesmo acontecia, com muito maior acuidade, nos
tempos do meu pai, nascido em 1910. Recordo-me de o ouvir contar, como só ele o
sabia fazer, as grandes tragédias marítimas a que assistiu e que o marcaram
também no apreço pelos pescadores de Buarcos.
Essa consideração e estima que o meu pai lhes dedicava levou-o a escrever com catorze ou quinze anos (1924/25?) o poema que ele intitulou de Balada do Mar e que é na realidade um grito de revolta contra o mar feroz, cruel e traiçoeiro.
Essa consideração e estima que o meu pai lhes dedicava levou-o a escrever com catorze ou quinze anos (1924/25?) o poema que ele intitulou de Balada do Mar e que é na realidade um grito de revolta contra o mar feroz, cruel e traiçoeiro.
Como foi também Outubro que me levou minha mãe e meu pai,
achei por bem dar à estampa, pela primeira vez, o poema de meu pai.
Vasco da Gama
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BALADA DO MAR
No
mar imenso rugem procelas
Que a
vida roubam aos mareantes;
Fúria
assassina que rasga as velas
Aos
frágeis barcos dos navegantes
Mar traiçoeiro,
mar de pavor
Monstro
sinistro sempre a uivar
Orfãos,
viúvas, pranto e dor
São
obra tua, maldito mar.
A tua
espuma- luar de Janeiro
De
alva brandura, triste e gelado
Parece
arminho imaculado
E é a
mortalha do marinheiro.
Água
maldita, lençol mortuário
De corpos frios, a balouçar
De corpos frios, a balouçar
Brilhas
na noite como um sudário
Num cemitério, feito ao luar.
Num cemitério, feito ao luar.
E
como a fera, que em sua gruta
Cheia
de fome finge dormir
E
está alerta, d'ouvido á 'scuta
Para
melhor a presa atrair
Assim
o monstro finge um sossego
Que é
traição; mas de repente
Ergue-se
uivando, de furor cego
E
espalha a morte, raivosamente...
Goela sinistra e tenebrosa
Tudo
engole sem distinção
Frágil
batel ou nau alterosa
Loura
criança ou velho ancião
Maldito
mar, em ti ocultas
Quantos
cadáveres apodrecidos
E
gangrenados em ti sepultas?
Oh!
tantos, tantos, que o peito sente
Ondas
de pranto em si brotar
Oh!
tantos, tantos, que a nossa mente
De pavor
treme só de o pensar!
Vasco Traqueia da Gama
Nota: No original, um pouco sumido, pode ler-se uma anotação manuscrita da sua professora e amiga,
D. Christina Torres, figura grande da Figueira da Foz na luta pela Liberdade.
quarta-feira, 14 de outubro de 2015
domingo, 11 de outubro de 2015
P706: MEMÓRIAS DO KAMBUTA
JUNTO
AO FORTIM DO DANGE, DEMBOS, ANGOLA
EM
TEMPO DE PAZ ACONTECEU TRAIÇÃO
Na década de
sessenta/setenta, de 1961 a 1975, tempo que durou a guerra do ultramar, os
soldados que foram chamados e obrigados a entrar na guerra eram rapazes na flor
da idade, obrigados a deixar para trás uma vida, e mais importante, a sua juventude,
para se tornarem Homens com “H” grande,
responsáveis - como se dizia, homens de
barba rija – que, sofrendo, souberam dignificar com sangue, suor e lágrimas
a sua linda Bandeira e o bom nome da sua Pátria, Portugal, e que entre si
souberam criar dentro do seu peito uma amizade pura, respeitando o lema “Um por Todos e Todos por Um”.
A verdadeira e
triste história que vou contar mostra como era cumprido esse lema “Um por Todos, Todos por Um”. Aconteceu
depois do 25 de Abril de 1974, já quando se falava que a guerra tinha terminado
e que passava a haver paz.
No Norte de
Angola, nos Dembos, fazíamos as colunas pela estrada que ligava Luanda a
Carmona - apelidada de estrada do café.
A coluna era comandada pelos nossos militares, era a nossa tropa a proteger os
camionistas assim como todos os veículos civis; havia por esse motivo controlo
na zona protegida pelo meu Batalhão BART/6222/73 - no Piri, onde se encontrava
uma Companhia nossa. Era uma altura
em que os grupos dos partidos de libertação já tinham começado a deixar as
matas e a aquartelar-se nas povoações.
Quando ninguém
o imaginava aconteceu o pior junto ao Fortim do Dange, com duas viaturas
militares nossas. Não recordo a que Quartel pertenciam mas, ou eram de Nambuangongo,
ou de Santa Eulália, ou do Zemba. As viaturas dirigiam-se ao Quartel do PAD (*), na
vila de Quibaxe, local onde se encontrava a minha companhia. Tinham como missão
recuperar uma viatura que tinha sido reparada naquela unidade.
Os militares
dessas Berliet aproveitaram para se incorporar na coluna desse dia,
colocando-se na frente. Depois de já terem passado a ponte do rio Dange
inesperadamente repararam que havia barro na estrada. Tinha chovido
torrencialmente e a Berliet que ia à frente ao passar por aquela mancha de
barro entrou em despiste e tombou, tendo os militares sido projectados pela
mata fora.
Nesse momento,
do outro lado da estrada rebentou uma granada perto da viatura tombada e dos
militares espalhados pela mata, feridos. O rebentamento não causou ferimentos
corporais a ninguém, felizmente, embora fosse intenção do IN causar danos,
matar.
Do acidente
não houve mortos, mas um ficou com uma perna partida, outro com um braço
partido e os restantes com vários ferimentos, e aterrorizados.
O nosso
quartel era o mais próximo; fomos por isso chamados, tendo-nos deslocado de
imediato com o piquete e a ambulância em socorro dos acidentados.
Ao chegarmos
encontrámos um cenário aterrador; ainda hoje, ao recordar, custa-me muito,
caiem-me as lágrimas por tudo o que presenciei - o sofrimento e os rostos
aterrorizados dos militares e dos civis que integravam a coluna, estes últimos prontificando-se
a fazer a protecção com as suas armas, utilizando para o efeito as armas dos
militares feridos.
Na ambulância seguiram
os mais necessitados - os feridos mais graves - sendo os restantes transportados
para a nossa enfermaria em viaturas civis.
Foi então que percebemos
as causas do acidente. Os elementos do grupo IN daquela zona, para mostrarem a
sua força aos grupos rivais de outros Partidos, colocaram, metidos e cobertos
com o barro, uns engenhos artesanais em aço, tipo aranha, com várias bases em
bicos afiados.
Resultou daí o rebentamento dos pneus, o que fez com que a Berliet
se despistasse, sem que o condutor pudesse fazer algo para o evitar. Para
agravar a situação lançaram então uma granada para causar danos aos nossos
soldados e civis.
Na enfermaria
o trabalho foi todo feito sem olhar a esforços pelo nosso médico e por nós,
enfermeiros, tendo também participado o enfermeiro do PAD. Aos dois militares
com a perna e braço partidos foi-lhes aplicado gesso, tendo sido evacuados para
o hospital militar de Luanda. Os outros feridos ligeiros foram todos socorridos
por nós; o pior de tudo era o trauma que todos eles apresentavam, pois, nada tinha
previsto tal acontecimento. Na nossa cabeça reinava a paz e não a guerra - era
o que nos transmitiam a todos nós militares no norte de Angola.
Tudo aquilo
foi muito doloroso para aqueles nossos camaradas. O alferes e o furriel das
duas viaturas queriam regressar ao seu quartel e o nosso médico aconselhou que
eles passassem a noite na nossa enfermaria. Nós enfermeiros, sem regatear, para
haver mais espaço juntámos as camas, onde a muito custo os deitámos um por um.
O mais
traumatizado, que precisava de mais atenção, era o enfermeiro dos acidentados;
ofereci-lhe a minha cama, onde o deitei e amarrei cuidadosamente com os
lençóis, tendo passado a noite toda sentado numa cadeira na enfermaria, de
vigia aos nossos camaradas que sofriam. A muito custo lá adormeceram mas,
durante a noite um levantou-se aterrorizado a gritar, eu tentei calmamente
deitá-lo mas ele caiu na cama inanimado.
Chamei então o médico, que o socorreu,
tendo-o colocado a soro; aconselhou-me a vigiá-lo de perto, pois estava sob o efeito
do que se tinha passado. A situação deste camarada acabou afinal por não
melhorar, tendo que ser também evacuado para o hospital militar de Luanda.
Durante a
noite alguns destes camaradas, perturbados por sonhos ou pesadelos, gritaram em
altos gritos de terror, o que me levou a tentar ajudar a acomodá-los, aconchegando-os
nas camas com as mantas. Ainda hoje choro ao recordar aquele cenário de
sofrimento, mas, sinto um fiozinho de satisfação no meu peito pelo meu dever
cumprido - o que fiz foi feito de coração aberto, para bem dos meus camaradas,
combatentes como eu.
No dia seguinte
depois do almoço já se encontravam um pouco mais calmos; o nosso pessoal foi
escoltá-los ao quartel deles, sendo que muitos não recordavam o que tinha
acontecido.
A amizade que
une esta geração sofredora soube criar entre si laços de companheirismo e
solidariedade que irão durar até ao último momento da sua vida. Estes
rapazinhos, que as circunstâncias transformaram rapidamente em Homens
com H grande, não precisam que os tratem por heróis, mas sim que os
respeitem e que lhes dêem o que merecem, que é a devida atenção.
Manuel “Kambuta dos Dembos” Lopes
(*) DAP - Grupo de apoio de militares com especialidade de mecânicos - auto, electricistas-auto, que davam apoio aos batalhões da zona, neste caso na zona dos Dembos, Quibaxe.
sexta-feira, 9 de outubro de 2015
P705: 47º Encontro da Tabanca do Centro - 25 de Setembro de 2015
.
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Fotografias do Juvenal Amado
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quarta-feira, 7 de outubro de 2015
P704: 47º Encontro da Tabanca do Centro - 25.09.2015
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Fotografias do Manuel Lopes
..
segunda-feira, 5 de outubro de 2015
P703: CRÓNICAS DO JERO
A ROTA DA MEMÓRIA
Na
revista do "Expresso" da edição nº. 2239, de 26 de Setembro último,
veio publicado um texto de Luís Pedro Nunes com o título em referência. Confesso
que o li com o coração bem apertado.
O
texto ocupa 6 páginas incluindo 4 fotografias de Alfredo Cunha. Tem a ver com
os traumas da guerra na Guiné (1961-1974) vistos quarenta e um anos depois.
Estive
a cumprir serviço militar no Norte da Guine (Binta e Guidage) de Maio de 1964 a
Maio de 1966.
A
minha Companhia - a CCaç. 675 - teve 3 mortos em combate, entre os quais o meu
melhor amigo. Os corpos dos militares da "675" vieram para as terras
da sua naturalidade a expensas da Companhia, onde foram condignamente
sepultados.
Mas
nem sempre foi assim. E muitas famílias não puderam fazer luto pelos
seus familiares mortos na Guiné. A transladação para a Metrópole custava ao
tempo cerca de 11 contos (11 mil escudos), o que para a época era muito
dinheiro.
No
texto do "Expresso" logo de início é referido que na Guiné há cerca
de 30 locais onde existem sepulturas de militares portugueses mortos durante a
guerra.
No
Cemitério Municipal de Bissau, que fica situado numa das zonas mais degradadas
da capital, há vários talhões com campas de militares portugueses.
O
jornalista do "Expresso" esteve lá e falou com um "responsáveis"
do cemitério.
Há
3 talhões de militares portugueses mortos. «Logo
à entrada, junto a campas sem nome, há 2 placas de 2010 da Liga dos Antigos
Combatentes. Mas a verdade é que grande parte do cemitério, lá para a zona do
fundo, está destruído ou a ser reciclado, isto é, reutilizado».
O
responsável pelos talhões dos militares portugueses chama-se Francisco Monteiro
tem 68 anos e foi antigo guerrilheiro do PAIGC. Em 1973 perdeu uma mão ao
tentar devolver uma granada lançada pela tropa portuguesa.
O
"turra" maneta, que cuida dos "tugas" mortos, dá uma volta
pelo cemitério com o jornalista do "Expresso".
«Há
aproximadamente 480 campas. Francisco Monteiro garante que ainda no ano passado
foram transladados para Portugal três corpos e que recebe visita de portugueses
"meses sim, meses não".
E, como tantos ex-combatentes do PAIGC que
encontramos, Francisco Monteiro é um desencantado com o país de hoje e como se
vive."Não tenho nada. O povo não tem nada. A Guiné podia ter tudo".»
Apetece-me
mudar o título do texto do "Expresso" para “A RODA DA MEMÓRIA”. Que
tantas voltas deu e que tantas voltas continua a dar.
Enquanto
permanecerem vivos ex-combatentes a sua memória não deixará parar a
"Roda".
Mas
as ervas e o capim vão continuando a crescer junto das campas ao abandono dos
militares mortos há mais de quatro décadas na Guiné.
Este
é um País - a Guiné - que teve sorte com tudo. Menos com os políticos, disseram
ao jornalista do "Expresso".
Não
sei porquê mas lembrei-me do Portugal dos nossos dias!
JERO
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