sexta-feira, 23 de outubro de 2015

P711: UMA DATA INESQUECÍVEL

O EMBARQUE NO UIGE, HÁ 47 ANOS

23 de Outubro de 1968,  4 da tarde. Estava no convés do UIGE a ver o mar largo, o mar azul e o céu da mesma cor, a pensar onde é que estava metido e para o que é que estaria guardado.

Logo de manhã, cedinho, uma camioneta foi aos Adidos buscar-nos – éramos pouco mais de uma dúzia em rendição individual – de saco às costas a caminho do cais. 

Já lá estava formado o BCAÇ 2856, oriundo do RI 15 de Tomar e bem assim mais um Pelotão da PM. Havia uma banda militar a abrilhantar a despedida e, em local próprio, estavam presentes altas patentes militares.

As senhoras do Movimento Nacional Feminino, também presentes, afadigavam-se a distribuir um maço de cigarros e um isqueiro aos que iam subindo a escada.

O resto, a maioria do pessoal no cais e nas varandas, eram familiares dos que iam partir, a acenar os seus lenços brancos de despedida e a desejarem que tudo corresse bem, muitos com a lágrima no olho, o que se compreende. 

Logo que me foi possível fui visitar o meu camarote, que era enorme. Mais de seiscentos beliches, bem arrumadinhos, à esquadria, em madeira de pinho, lá bem no fundo do porão para não enjoarmos muito.


Ainda antes do almoço tive que ir à enfermaria do barco continuar um tratamento que já andava a fazer há alguns dias e aí constatei um bom serviço.

Depois foi o almoço. Naquela sala grande que permitia que víssemos o mar, tanto a bombordo como a estibordo, dados os balanços do barco que era de algum modo desproporcionado entre o comprimento que era grande e a largura que não era tanta. Mas era uma boa sala e a comida, não sendo nada de especial, também se comia. O apetite naquele primeiro dia é que não era grande.

À tarde, houve uma passagem por um bar onde se vendia uma cerveja holandesa, daquelas grandes, como nunca tínhamos visto.

Depois foi o jantar na mesma sala e muitos de nós, logo a seguir, descemos aos nossos aposentos porque o final do dia começava a estar fresco.

Lá em baixo, no tal camarote, o cheiro era insuportável, a luz era pouca mas os batoteiros profissionais já tinham a banca armada para limpar as carteiras aos mais desprevenidos.

A noite foi caindo, mas lá em baixo era sempre noite cerrada porque, mesmo de dia, o sol só lá entrava pela pequena boca do porão.

Foi assim o primeiro dia duma comissão que durou mais de vinte e cinco meses.

Carlos Pinheiro
23.10.15


P710: DICAS PARA PESQUISAR NO BLOGUE

Deixamo-vos aqui alguns conselhos que vos poderão ajudar a pesquisar assuntos no blogue. Este poste irá sendo actualizado quando tal se justificar. 

Poderás ter sempre acesso ao mesmo clicando na imagem que a partir de agora irá estar disponibilizada na coluna da direita. A imagem que mostramos aqui ao lado.

A Tabanca do Centro      



















terça-feira, 20 de outubro de 2015

P709: DO LÚCIO VIEIRA, UMA HISTÓRIA REALMENTE SURREAL...

       SUBMARINO À VISTA!

Até no desenrolar dos dramas mais pungentes emergem, com alguma frequência, pequenos oásis de balsâmica voluptuosidade, preciosas gotas de água, que se libertam das nuvens da vida e nos refrescam o escaldante quotidiano, pautado pelas dores que sempre resultam das tragédias. Também no seio dos conflitos armados desabrocham, por vezes, essas pequenas e decisivas pérolas, que nos ajudam a refazer o debilitado estado de espírito e nos criam uma reserva de revigorante resistência aos sucessivos assaltos de uma sorte mais madrasta do que a madrasta da Cinderela. Chega. Nada melhor do que contarmos, sem mais delongas, o insólito episódio, ocorrido algures nas margens de um caudaloso rio africano e tendo como cenário um diminuto cais, junto às pré-históricas instalações de um pequeno destacamento militar, algures nas entranhas da Guiné, em meados da longínqua década de 1960.

Manhã cedo – pouco passaria das sete e meia – de um dia já a aquecer e a prometer mais uma escaldante jornada, em tudo igual às que habitualmente pautavam aquele, quase esquecido, reduto de uma reduzida unidade de Engenharia. A capital não distava muitas léguas e o local, quase inacessível por terra, alcançado apenas por tosca e estreita estrada, era classificado, à época, como um reduto seguro, pouco susceptível de se apresentar como alvo de ataques inimigos.

Atracada, uma tosca jangada, de motor assustadoramente periclitante – na ausência de uma mais sofisticada LDM da marinha - aguardava a chegada de uma qualquer coluna de veículos em trânsito, que ali necessitasse efectuar a travessia do largo curso de água. Pelo espaço em redor, após um reconfortante pequeno-almoço, os rapazes desentorpeciam as pernas, puxavam umas fumaças nos cigarros americanos, trazidos de Bissau e preparavam-se para mais um dia monótono e arrastado, igual aos restantes dias da monótona e arrastada comissão de serviço.

Uma pasmaceira, aquele restar por ali, entre as refeições, umas partidas de sueca, umas mornas e coladeiras na rádio, umas revistas com gajas nuas, as sessões de anedotas, os aerogramas para a Maria, algumas fotografias e, quando calhava, três ou quatro viaturas, para enfiar na jangada e transportar para a margem contrária.

 Perdiam-se os olhos na imensidão do rio, pela cinzenta mancha de bolanha, que quase cercava as pequenas barracas, forradas a chapa de zinco, que o destacamento habitava; pelo renque de árvores – bissilões, na sua maioria – que ornavam a estrada na margem norte do rio, a dezenas de metros de distância, do outro lado onde os combates se iam tornando, cada vez com maior intensidade, um acontecimento diário.

Mais a sul, por entre os restos de neblina que se elevavam da bolanha, os olhos ainda distinguiam a enorme mancha verde-escura do tarrafo que, da margem virada a poente, se alongava até perder de vista, para as bandas do mar. Dois ou três, dos homens do destacamento, ocupavam-se entretanto, junto ao cais, na recolha das armadilhas, deixadas no rio na noite anterior. Havia sempre peixe que optava por não dormir e o que buscava o engodo, nos engenhos de rede; habitualmente dava para uma refeição à pequena guarnição do destacamento.

De pé, encostado à tosca viga de palmeira-dendém, num dos cantos do alpendre do polivalente refeitório-secretaria e sala de convívio, o alferes que comandava o destacamento observava, a espaços, a paisagem em redor, por vezes de binóculo em punho, com o olhar atento e perscrutador, que se exige à suprema responsabilidade dos lideres, a quem compete zelar pelas vidas dos homens sob o seu comando e dos haveres, que o estado português confiara à sua guarda.

Pese embora o facto de, por aquelas bandas, jamais ter havido notícia de presença inimiga, o homem sabia que não podia baixar a guarda. Quando menos se espera… E recordava, amiúde, os episódios lidos e relidos, sobre guerras distantes ou passadas, nos quais se dava conta das surtidas traiçoeiras, dos audaciosos golpes furtivos e das mil e uma artimanhas, que o génio dos grandes cabos de guerra sempre souberam engendrar, para colher o inimigo de surpresa. E também da importância estratégica de destacadas zonas do globo, locais cirurgicamente nevrálgicos para o rumo dos conflitos.

Assim, aquele perdido posto militar, encravado entre a bolanha e o largo rio, bem podia ser – quem sabe - o seu estratégico rochedo de Gibraltar, ou algo semelhante. Por isso o nosso alferes não baixava a guarda. Cônscio da importância de uma observação constante e minuciosa, o homem queimava as pestanas, observando metro por metro, litro por litro, as margens e o leito do rio, que na sua frente se abriam. Com ele, ficasse o inimigo a saber, não contassem para menosprezar os perigos, muito menos para se entregar ao desleixo da rotina, que a experiência lhe dizia ser sempre má conselheira.

Um homem, enfim, ciente da sua responsabilidade e da transcendência da missão que até ali o levara; àquele pasmado e frustrante longe de tudo, perdido entre nenhures, onde, habitualmente, o mais emocionante, do arrastado quotidiano, era a passagem, no seio das colunas militares, de uma ou outra bajuda, à boleia. No seio, foi o que atrás se escreveu, porque nos ditos das moçoilas, rijinhos e ali ao léu, vulgarmente designados por “mama firmada”, já a rapaziada ia, despudoradamente, e sempre que o ensejo se proporcionava, aquecendo as manápulas, naquele tão cativante, quanto emotivo e patriótico, exercício de acção psicossocial. 

Estava-se nisto quando, binóculos virados a montante, algo lhe chamou a atenção, lá longe no caudal do rio, logo após a curva junto ao mangal. Havia ali qualquer coisa a navegar, lentamente, em total discrição, descendo sorrateiramente o rio, bem no meio da corrente. Deixou o local de vigia, no alpendre do barracão e aproximou-se da margem. Não, não havia dúvidas: vinha ali qualquer coisa estranha, com um navegar manhoso. Algo enfim, naquela manhã, descia, lenta e matreiramente, a corrente. Mal se vislumbrava o dorso escuro do enigmático objecto, mas bem se via que era algo grande, arredondado e estranhamente silencioso.

Por entre a onda de espuma que a sua passagem levantava, erguia-se sobre ele, na vertical e a cerca de um metro acima da água, hirto e misterioso, um outro objecto, igualmente redondo e escuro, a fazer lembrar um vulgar tubo de canalização. “Diabo, se aquilo não parece um submarino…”, cogitava o intrigado graduado, de cenho franzido e sentidos alerta. Voltou a mirar o estranho objecto que sulcava as águas, bem no meio da corrente, a uns bons cem metros da margem. 

Numa daqueles clássicas decisões, bem expressas nos cânones da caserna, que mandam, em caso de dúvida, atirar primeiro antes de se perguntar “quem vem lá?”, o homem tomou de imediato uma decisão de radical efeito. E tudo ali então se precipitou. De binóculo em riste - em clara desvantagem ante o, bem mais potente e avantajado, “periscópio” inimigo - porém munido de corajoso ímpeto de destemido afrontamento, o alferes gritava a plenos pulmões: “Peguem nas armas! Vai ali um submarino!”, enquanto os homens, dispersos pelo recinto, de expressão aparvalhada, tentavam perceber a situação. Antes de desaparecer no interior das instalações, em busca da sua própria arma e de umas quantas granadas defensivas, ainda o espavorido oficial repetia à restante guarnição: “Porra, vão buscar as armas!”

Atarantados, os rapazes corriam, desordenadamente, para o interior dos barracões, em busca das G3. Pelo caminho, um ou outro, de mente menos confusa, ia-se deitando a matutar que ideia seria aquela de enfrentar um submarino com umas reles espingardas automáticas, mais umas pobres granadas, que tanta falta faziam para as radicais pescarias do peixe mais graúdo. Mas pronto, o alferes é que tinha os livros; por aquelas bandas, ainda era quem mandava na guerra. Entrincheirado com a jangada, o destemido comandante da guarnição abria fogo de rajada sobre o “submersível inimigo”.

Só podia ser inimigo, já que a pelintra marinha de guerra nacional ainda não conseguira orçamento para tais luxos. Porém, o PAIGC ainda menos. Era pois, seguramente, um vaso de guerra de leste, da União Soviética, que todos sabiam estar de panelinha com os movimentos guerrilheiros. “Fogo, fogo nele!”, gritava o homem, qual Rommel no deserto, qual Napoleão antes da debandada em Waterloo, qual Nuno Álvares em Aljubarrota ou, mais adequadamente, qual Mouzinho em Chaimite. As balas – apenas as dele, adiante-se – tracejavam as águas, levantavam cogumelos de espuma, enquanto por ali, deitados no chão, em posição de fogo, os homens se entreolhavam, de expressões idiotas, sem entender patavina da situação.

“Aquilo é um submarino! É ou não é, malta?”, interrogava ele, aos brados, num esforço de autoconvencimento. “É, é, meu alferes! Vê-se bem…”, respondiam os homens, confusos e sem coragem para contrariar o agitado superior. “Fogo nele! Afundem os gajos!” Relutantes, os subalternos lá iam disparando uns tiros dispersos, que aquilo de estar ali ao desvario a atirar para o boneco, não lhes cabia lá muito na cachimónia. 

O intrépido alferes, entretanto, em pequenas corridas pela margem, na busca de melhores posições de tiro, não dava tréguas ao misterioso objecto navegante. Era uma cena patética, digna da mais talentosa opera-buffa, dos gloriosos tempos da commedia dell’arte. Nos fugazes segundos que mediariam, entre o gizar de uma estratégia de ataque, ao iminente, inevitável e definitivo afundamento do descomunal submersível, o homem imaginava-se nas capas dos jornais da longínqua capital do império, sob os holofotes da televisão e os microfones das rádios, nos gabinetes dos ministérios e chancelarias, nos jantares de gala em sua honra, no decorrer dos quais, uma vez mais, se enalteceria, nas vozes embargadas dos nossos mais lídimos representantes, o seu heróico feito.

O homem já se via - mais do que numa qualquer e banal entrega de medalhosas distinções, no Terreiro do Paço - nos próprios salões do palácio de Belém, altivo, impante, solene, distinto, em farda de gala, na presença das mais altas figuras da nação. E depois – oh, subida glória! – recebendo, das mãos do venerando chefe de estado, uma qualquer comenda, das várias com que o patrono das ordens honoríficas habitualmente ornamenta o pescoço e o ego dos nossos mais distintos eleitos. Depois, como corolário, talvez o nome numa rua da sua vila natal, quiçá de vilas e cidades de norte a sul do país, e a inevitável promoção por distinção que, unanimemente, as altas chefias forenses não deixariam de lhe proporcionar.

Que subida honra, que glória, que página, nos anais onde se canta a imortalidade dos heróis. Caramba! Não é todos os dias – nem, porventura, em todas as guerras – que se abate, sem remissão, ou se aprisiona, um submarino inimigo, recheado de uma tripulação amedrontada e rendida à heroicidade de meia dúzia de bravos militares portugueses. De Engenharia. Ainda por cima, homens da Engenharia!

Toda a pequena guarnição estava, pois, prestes a protagonizar um feito único nos anais da história militar lusíada. Uma epopeia que contariam aos filhos e netos, os quais, orgulhosos do apelido e do sangue herdados, haveriam de se rever nela por incontáveis gerações. “Atirem, não o deixem escapar!”, e os rapazes, mais para evitar reprimendas do que para confrontar a ameaça navegante, lá iam despejando carregadores, para aquele intruso flutuante que, oriundo por ventura dos confins soviéticos, ali lhes calhou em sorte, por certo numa missão de solidária “mãozinha” ao inimigo. Uma, duas rajadas. O arrojado alferes não descansava. Depois, granada na mão, cavilha arrancada com um gesto largo e decidido e o lançamento do engenho para bem longe, nas águas do rio.

À boca pequena comentava-se: “O nosso alferes não ‘tá bom da cabeça”. Então “aquilo” estava a ir ali a mais de cem metros de distância… quem é que o alferes pensava que era: “campeão do lançamento do martelo, ou quê?” Entretanto, mesmo ali frente ao cais, com um repentino remoinhar das águas, o “vaso de guerra inimigo” inverteu o “leme” a estibordo e parecia querer rumar a montante, de onde havia pouco surgira.

“Está com medo, rapazes: ele está com medo. Vai voltar para trás! Fogo, não o deixem fugir!” E as armas voltaram a troar, rasgando de novo a quietude da manhã. E que manhã! Ciente agora que o matreiro submersível tentava escapar, o homem lembrou-se que, no reduzido espaço que servia de paiol, repousava a um canto uma metralhadora ligeira. Lá estava, havia muito, para o que desse e viesse. “A Dreyse, tragam a Dreyse!”.

Lesto, o cabo e um soldado ergueram-se, entreolharam-se por momentos e partiram numa corrida, desaparecendo no interior das instalações. Quando voltaram, de metralhadora em punho e uma braçada de carregadores a caírem dos braços, deixaram a arma nas mãos decididas do alferes e aprestaram-se para o municiar.

Da ponta da jangada, já sobre as águas, a Dreyse iniciou então o ritmado e mortífero concerto. As balas sulcavam as águas e atingiam certeiramente a misteriosa “embarcação”, ante o eufórico frenesim que agitava o bravo oficial. Fosse por acção das balas, ou por capricho da corrente do rio, o manhoso “submarino” inverteu de novo a rota e voltou a navegar para jusante, rumando, tranquila e suavemente, para a foz. Ficava já fora do alcance do fogo lançado da margem e parecia ir perder-se para lá da curva frente ao bosque de palmeiras, na viagem que o levaria ao oceano.

As armas calaram-se. Uma densa e negra nuvem formava-se agora, nos olhos e na mente do ofegante comandante do destacamento de Engenharia, aquartelado naquela perdida margem de rio. As honrarias, as comendas, os 5 jantares e discursos e as ruas com o seu nome esfumavam-se assim, mais depressa do que o fumo que se evadira dos canos das armas. Oh, glória tão efémera e vã! Oh, história tão ingrata, que assim lhe iria olvidar o nome. Que dia aquele, de tanto fervor patriótico e de tanta alma guerreira, transformados, ingloriamente, na mais redundante e decepcionante manobra militar, alguma vez encetada em terras da Guiné.

Os deuses, os tais do Olimpo, deviam mesmo estar loucos. Oh, como os reveses enchem, tanta vez, as guerras de infortúnio. Ia assim o homem cismando, tentando refazer-se dos amargos de boca, resultantes da frustrante acometida. Acalmara-se um pouco. Acendeu um cigarro e encaminhou-se, cabisbaixo e de cenho franzido, para o recato das instalações. Necessitava de um revigorante whisky, para encarrilar as ideias.

No exterior, ainda aturdidos, os homens olhavam-se, acendiam igualmente cigarros e, entre o encarrilar de ideias e a sequente procura do revigorante whisky, quedaram-se, por momentos, a matutar, que raio de mosca teria mordido ao alferes, para desatar a ver submarinos e a despejar quilos de munições, num pobre e inofensivo tronco de bissilão que, inadvertidamente, entendeu entregar-se aos prazeres da navegação no dia errado, no rio errado e na hora errada.

O perturbado alferes, esse entretanto e enquanto via esvaírem-se os sonhos de glória e imortalidade, de olhar lançado ao alto e pensamento embargado pela emoção, justificava a si próprio o desaire, citando – como, de resto fica bem em situações tão dramaticamente solenes, como aquela – as palavras do poeta: “malhas que o Império tece…” Perdão; tecia.

Em rodapé, aqui - como preito de homenagem ao avisado bom senso - se regista o alívio da restante guarnição, pelo facto de, na balburdia gerada pelo fragor da insólita “peleja”, o inefável e confuso alferes nunca se ter lembrado de, via rádio, pedir o apoio dos T-6 da Força Aérea, ou dos patrulheiros da Marinha. Valeu esse lapso porque, para ridículo, já tinham de sobra para contar…
Lúcio Vieira
Ex-Furriel Miliciano do
BCAV 790 / CCAV 788
Guiné 1965/1967.

sábado, 17 de outubro de 2015

P708: NA RESSACA DE UMA TRAGÉDIA

MALDITO MAR

O naufrágio ocorrido há dias na entrada da barra da Figueira da Foz que causou cinco mortos trouxe-me à memória os gritos lancinantes que ouvia na minha juventude vivida ali mesmo no Largo da Má Língua, onde nos invernos mais rigorosos os botes e as bateiras repousavam serenos, fugidos das ondas alterosas que nas marés mais fortes lambiam as portas das nossas casas. Corriam os anos cinquenta e os naufrágios dos pequenos barcos de pesca costeira e também das traineiras ocorriam com alguma infeliz regularidade.

Numa vila eminentemente piscatória a esmagadora maioria dos meus amigos de brincadeira e companheiros de escola provinham de famílias de pescadores e desde cedo me habituei e aprendi a estimá-los e a respeitar a tão ingrata profissão de seus pais. 
Mantenho, felizmente ainda hoje, todas as amizades de então, feitas na melhor altura das nossas vidas de rapazes livres, independentemente dos percursos de vida de cada um de nós.

Se no meu tempo de miúdo de dez anos grande parte da população dependia da pesca, o mesmo acontecia, com muito maior acuidade, nos tempos do meu pai, nascido em 1910. Recordo-me de o ouvir contar, como só ele o sabia fazer, as grandes tragédias marítimas a que assistiu e que o marcaram também no apreço pelos pescadores de Buarcos.

Essa consideração e estima que o meu pai lhes dedicava levou-o a escrever com catorze ou quinze anos (1924/25?) o poema que ele intitulou de Balada do Mar e que é na realidade um grito de revolta contra o mar feroz, cruel e traiçoeiro.

Como foi também Outubro que me levou minha mãe e meu pai, achei por bem dar à estampa, pela primeira vez, o poema de meu pai.

Vasco da Gama       

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BALADA DO MAR

No mar imenso rugem procelas                                     
Que a vida roubam aos mareantes;
Fúria assassina que rasga as velas
Aos frágeis barcos dos navegantes

Mar traiçoeiro, mar de pavor
Monstro sinistro sempre a uivar
Orfãos, viúvas, pranto e dor
São obra tua, maldito mar.

A tua espuma- luar de Janeiro
De alva brandura, triste e gelado
Parece arminho imaculado
E é a mortalha do marinheiro.

Água maldita, lençol mortuário
De corpos frios, a balouçar
Brilhas na noite como um sudário
Num cemitério, feito ao luar.

        E como a fera, que em sua gruta
        Cheia de fome finge dormir
        E está alerta, d'ouvido á 'scuta
        Para melhor a presa atrair

        Assim o monstro finge um sossego
        Que é traição; mas de repente
        Ergue-se uivando, de furor cego
        E espalha a morte, raivosamente...

Goela sinistra e tenebrosa
Tudo engole sem distinção
Frágil batel ou nau alterosa
Loura criança ou velho ancião

Quantos mistérios desconhecidos
Maldito mar, em ti ocultas
Quantos cadáveres apodrecidos
E gangrenados em ti sepultas?

Oh! tantos, tantos, que o peito sente
Ondas de pranto em si brotar
Oh! tantos, tantos, que a nossa mente
De pavor treme só de o pensar!


 Vasco Traqueia da Gama                           



Nota:  No original, um pouco sumido, pode ler-se uma anotação manuscrita da sua professora e amiga,  
D. Christina Torres, figura grande da Figueira da Foz na luta pela Liberdade.

domingo, 11 de outubro de 2015

P706: MEMÓRIAS DO KAMBUTA

JUNTO AO FORTIM DO DANGE, DEMBOS, ANGOLA
EM TEMPO DE PAZ ACONTECEU TRAIÇÃO


Na década de sessenta/setenta, de 1961 a 1975, tempo que durou a guerra do ultramar, os soldados que foram chamados e obrigados a entrar na guerra eram rapazes na flor da idade, obrigados a deixar para trás uma vida, e mais importante, a sua juventude, para se tornarem Homens com “H” grande, responsáveis - como se dizia, homens de barba rija – que, sofrendo, souberam dignificar com sangue, suor e lágrimas a sua linda Bandeira e o bom nome da sua Pátria, Portugal, e que entre si souberam criar dentro do seu peito uma amizade pura, respeitando o lema “Um por Todos e Todos por Um”.

A verdadeira e triste história que vou contar mostra como era cumprido esse lema “Um por Todos, Todos por Um”. Aconteceu depois do 25 de Abril de 1974, já quando se falava que a guerra tinha terminado e que passava a haver paz.

No Norte de Angola, nos Dembos, fazíamos as colunas pela estrada que ligava Luanda a Carmona - apelidada de estrada do café. A coluna era comandada pelos nossos militares, era a nossa tropa a proteger os camionistas assim como todos os veículos civis; havia por esse motivo controlo na zona protegida pelo meu Batalhão BART/6222/73 - no Piri, onde se encontrava uma Companhia nossa. Era uma altura em que os grupos dos partidos de libertação já tinham começado a deixar as matas e a aquartelar-se nas povoações.

Quando ninguém o imaginava aconteceu o pior junto ao Fortim do Dange, com duas viaturas militares nossas. Não recordo a que Quartel pertenciam mas, ou eram de Nambuangongo, ou de Santa Eulália, ou do Zemba. As viaturas dirigiam-se ao Quartel do PAD (*), na vila de Quibaxe, local onde se encontrava a minha companhia. Tinham como missão recuperar uma viatura que tinha sido reparada naquela unidade.

Os militares dessas Berliet aproveitaram para se incorporar na coluna desse dia, colocando-se na frente. Depois de já terem passado a ponte do rio Dange inesperadamente repararam que havia barro na estrada. Tinha chovido torrencialmente e a Berliet que ia à frente ao passar por aquela mancha de barro entrou em despiste e tombou, tendo os militares sido projectados pela mata fora.
Nesse momento, do outro lado da estrada rebentou uma granada perto da viatura tombada e dos militares espalhados pela mata, feridos. O rebentamento não causou ferimentos corporais a ninguém, felizmente, embora fosse intenção do IN causar danos, matar.

Do acidente não houve mortos, mas um ficou com uma perna partida, outro com um braço partido e os restantes com vários ferimentos, e aterrorizados.

O nosso quartel era o mais próximo; fomos por isso chamados, tendo-nos deslocado de imediato com o piquete e a ambulância em socorro dos acidentados. 

Ao chegarmos encontrámos um cenário aterrador; ainda hoje, ao recordar, custa-me muito, caiem-me as lágrimas por tudo o que presenciei - o sofrimento e os rostos aterrorizados dos militares e dos civis que integravam a coluna, estes últimos prontificando-se a fazer a protecção com as suas armas, utilizando para o efeito as armas dos militares feridos.

Na ambulância seguiram os mais necessitados - os feridos mais graves - sendo os restantes transportados para a nossa enfermaria em viaturas civis.

Foi então que percebemos as causas do acidente. Os elementos do grupo IN daquela zona, para mostrarem a sua força aos grupos rivais de outros Partidos, colocaram, metidos e cobertos com o barro, uns engenhos artesanais em aço, tipo aranha, com várias bases em bicos afiados. 

Resultou daí o rebentamento dos pneus, o que fez com que a Berliet se despistasse, sem que o condutor pudesse fazer algo para o evitar. Para agravar a situação lançaram então uma granada para causar danos aos nossos soldados e civis.

Na enfermaria o trabalho foi todo feito sem olhar a esforços pelo nosso médico e por nós, enfermeiros, tendo também participado o enfermeiro do PAD. Aos dois militares com a perna e braço partidos foi-lhes aplicado gesso, tendo sido evacuados para o hospital militar de Luanda. Os outros feridos ligeiros foram todos socorridos por nós; o pior de tudo era o trauma que todos eles apresentavam, pois, nada tinha previsto tal acontecimento. Na nossa cabeça reinava a paz e não a guerra - era o que nos transmitiam a todos nós militares no norte de Angola.

Tudo aquilo foi muito doloroso para aqueles nossos camaradas. O alferes e o furriel das duas viaturas queriam regressar ao seu quartel e o nosso médico aconselhou que eles passassem a noite na nossa enfermaria. Nós enfermeiros, sem regatear, para haver mais espaço juntámos as camas, onde a muito custo os deitámos um por um.

O mais traumatizado, que precisava de mais atenção, era o enfermeiro dos acidentados; ofereci-lhe a minha cama, onde o deitei e amarrei cuidadosamente com os lençóis, tendo passado a noite toda sentado numa cadeira na enfermaria, de vigia aos nossos camaradas que sofriam. A muito custo lá adormeceram mas, durante a noite um levantou-se aterrorizado a gritar, eu tentei calmamente deitá-lo mas ele caiu na cama inanimado. 

Chamei então o médico, que o socorreu, tendo-o colocado a soro; aconselhou-me a vigiá-lo de perto, pois estava sob o efeito do que se tinha passado. A situação deste camarada acabou afinal por não melhorar, tendo que ser também evacuado para o hospital militar de Luanda.

Durante a noite alguns destes camaradas, perturbados por sonhos ou pesadelos, gritaram em altos gritos de terror, o que me levou a tentar ajudar a acomodá-los, aconchegando-os nas camas com as mantas. Ainda hoje choro ao recordar aquele cenário de sofrimento, mas, sinto um fiozinho de satisfação no meu peito pelo meu dever cumprido - o que fiz foi feito de coração aberto, para bem dos meus camaradas, combatentes como eu.

No dia seguinte depois do almoço já se encontravam um pouco mais calmos; o nosso pessoal foi escoltá-los ao quartel deles, sendo que muitos não recordavam o que tinha acontecido.

A amizade que une esta geração sofredora soube criar entre si laços de companheirismo e solidariedade que irão durar até ao último momento da sua vida. Estes rapazinhos, que as circunstâncias transformaram rapidamente em Homens com H grande, não precisam que os tratem por heróis, mas sim que os respeitem e que lhes dêem o que merecem, que é a devida atenção.

Manuel “Kambuta dos Dembos” Lopes

(*) DAP - Grupo de apoio de  militares com especialidade de mecânicos - auto, electricistas-auto, que davam apoio aos batalhões da zona, neste caso na zona dos Dembos, Quibaxe.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

P703: CRÓNICAS DO JERO

A ROTA DA MEMÓRIA

Na revista do "Expresso" da edição nº. 2239, de 26 de Setembro último, veio publicado um texto de Luís Pedro Nunes com o título em referência. Confesso que o li com o coração bem apertado.

O texto ocupa 6 páginas incluindo 4 fotografias de Alfredo Cunha. Tem a ver com os traumas da guerra na Guiné (1961-1974) vistos quarenta e um anos depois.

Estive a cumprir serviço militar no Norte da Guine (Binta e Guidage) de Maio de 1964 a Maio de 1966.

A minha Companhia - a CCaç. 675 - teve 3 mortos em combate, entre os quais o meu melhor amigo. Os corpos dos militares da "675" vieram para as terras da sua naturalidade a expensas da Companhia, onde foram condignamente sepultados.

Mas nem sempre foi assim. E muitas famílias não puderam fazer luto pelos seus familiares mortos na Guiné. A transladação para a Metrópole custava ao tempo cerca de 11 contos (11 mil escudos), o que para a época era muito dinheiro.

No texto do "Expresso" logo de início é referido que na Guiné há cerca de 30 locais onde existem sepulturas de militares portugueses mortos durante a guerra.

No Cemitério Municipal de Bissau, que fica situado numa das zonas mais degradadas da capital, há vários talhões com campas de militares portugueses.

O jornalista do "Expresso" esteve lá e falou com um "responsáveis" do cemitério.

Há 3 talhões de militares portugueses mortos. «Logo à entrada, junto a campas sem nome, há 2 placas de 2010 da Liga dos Antigos Combatentes. Mas a verdade é que grande parte do cemitério, lá para a zona do fundo, está destruído ou a ser reciclado, isto é, reutilizado».

O responsável pelos talhões dos militares portugueses chama-se Francisco Monteiro tem 68 anos e foi antigo guerrilheiro do PAIGC. Em 1973 perdeu uma mão ao tentar devolver uma granada lançada pela tropa portuguesa.

O "turra" maneta, que cuida dos "tugas" mortos, dá uma volta pelo cemitério com o jornalista do "Expresso".

«Há aproximadamente 480 campas. Francisco Monteiro garante que ainda no ano passado foram transladados para Portugal três corpos e que recebe visita de portugueses "meses sim, meses não". 

E, como tantos ex-combatentes do PAIGC que encontramos, Francisco Monteiro é um desencantado com o país de hoje e como se vive."Não tenho nada. O povo não tem nada. A Guiné podia ter tudo".»

Apetece-me mudar o título do texto do "Expresso" para “A RODA DA MEMÓRIA”. Que tantas voltas deu e que tantas voltas continua a dar.

Enquanto permanecerem vivos ex-combatentes a sua memória não deixará parar a "Roda".

Mas as ervas e o capim vão continuando a crescer junto das campas ao abandono dos militares mortos há mais de quatro décadas na Guiné.

Este é um País - a Guiné - que teve sorte com tudo. Menos com os políticos, disseram ao jornalista do "Expresso".

Não sei porquê mas lembrei-me do Portugal dos nossos dias!

JERO