domingo, 1 de novembro de 2015

P715: HÁ 47 ANOS...

BISSAU, 1968 – DIA DE TODOS OS SANTOS

Era o 1º de Novembro de 1968, dia de Todos os Santos. Estava no meu terceiro dia na Guiné, Tinha chegado no Uige em 28 de Outubro e estava “adido“ nos Adidos, em Brá, porque tinha ido em rendição individual e o meu Batalhão, o 1911, regressaria no mesmo barco onde eu tinha ido. Coisas da tropa… Só que, mesmo depois da comissão terminada e com o barco ao largo, à espera, mesmo assim o 1911 tinha saído para uma operação especial no sul. E o Uige lá esperou mais de uma semana…

Por tudo isso ali estava nos Adidos, um quartel de passagem onde as condições (ou a falta delas…) eram inimagináveis. Uma cama? O que era isso para os periquitos (1)? Comida? Tenham calma. Podem lá ir fora desenfiados que ninguém dá pela vossa falta. Devem trazer ainda algum patacão (2) da metrópole no bolso… “Desenrasquem-se”, era a palavra de ordem; e assim íamos fazendo conforme podíamos.

Tudo estava ali de passagem, à espera de um destino. Para os que chegavam, era a espera da guia de marcha para o destino. Para os outros, os que já tinham terminado a comissão, era a espera do regresso desejado. Portanto, como não havia tanta coisa, camas era o que mais faltava – não havia mesmo. A malta desenras-cava-se a dormir em cima daquelas caixas que na metrópole serviam para guardarmos debaixo da cama as nossas coisas (e especialmente o farnel de casa e as botas de sair, bem engraxadas). Ali, não. Ali serviam mesmo de cama…

A primeira noite foi horrível. Os mosquitos, aos milhares dada a evidente falta de higiene e de qualquer tipo de limpeza - ainda por cima com as bolanhas (3) ali à volta – sabiam escolher o sangue novo acabado de chegar. No dia seguinte ainda não havia feridas, mas tínhamos o corpo todo picado. Parecia que tínhamos rubéola… Havia portanto que arranjar um sítio para dormir; e eu, à boa maneira portuguesa, acabei por ter sorte.

Ainda no cais, no dia anterior quando desembarquei, encontrei um conterrâneo, já “velhote” naquelas coisas da guerra. Era condutor na Companhia de Transportes. Tinha sido ele, e os seus camaradas que nos transportaram, na véspera, naquelas velhas GMC da 2.ª Grande Guerra, para os nossos destinos. Foi ele que no dia seguinte me procurou para me dizer que provisoriamente me arranjava uma cama com mosquiteiro na sua Companhia, no Quartel-General, em Santa Luzia. Foi uma pequena felicidade, já que a maior parte dos companheiros de viagem só muito mais tarde é que teve a tal cama com mosquiteiro. Sim, esta coisa do mosquiteiro era um pormenor mais que importante, porque assim os mosquitos não nos chegavam ao pêlo.

Talvez por isso, talvez porque não conhecia ainda mais ninguém naquelas paragens, mas também com um sentimento de agradecimento, convidei o meu amigo para um petisco nesse dia de Todos os Santos.

Foi ele que escolheu o sítio. Aliás, eu ainda não conhecia nada. E assim, lá fomos até Safim, nos arredores de Bissau, onde se comiam umas ostras que eu ainda não sabia apreciar, mas também se comia um bocado de leitão e se bebiam umas “bazookas” da Metrópole ou até mesmo de Angola, a Cuca ou a Nocal, ou de Moçambique, a 2M, salvo erro.

A páginas tantas, como soe dizer-se, a meio do repasto, começa a passar por cima de nós uma série de helicópteros, movimentos esses a que eu não estava habituado e certamente por isso perguntei a que se devia tal bailado. E o meu amigo não se fez rogado:

- Havia ronco (4)). Mas o que era ronco?
E ele lá me explicou. Havia “porrada” de certeza.

Mas nós lá fomos cumprindo a obrigação que nos tinha levado aquele sítio. A temperatura era elevada, a humidade era ainda maior. Havia portanto que refrescar o corpo com as bebidas frescas sem que notássemos que a mente ficava cada vez mais nublada.

Depois, lá voltámos ao quartel, a Santa Luzia, à procura do local do descanso. Mas qual descanso? Quando lá chegámos, de certo modo “alegres”, mandaram-nos calar porque a caserna estava cheia de feridos.

Feridos? Mas como? Foi como um balde água fria. O “calor” passou-nos de imediato. Caímos de imediato em nós. O que é que se tinha passado? Tinha sido só mais um caso. Dramático como muitos outros. Um “periquito”, talvez duma Companhia que tinha ido comigo no barco, ao subir para uma GMC na zona de Bula, a caminho do seu destino, deixou cair a sua bazuca armada e aconteceu um mar de dor e de sangue.

Nunca cheguei a saber quantos morreram, mas alguns acabaram ali a comissão que estavam a iniciar. Muitos feridos estilhaçados em tudo que era sitio. Nos braços, nas pernas, tronco, na cabeça, onde calhou. Daí aquele bailado dos helicópteros. No meio dos feridos, alguns eram condutores da Companhia de Transportes. Por isso, o HM 241, o Hospital Militar de Bissau onde se fizeram autênticos milagres durante toda a guerra, pediu aquela Unidade para recrutar pessoal para ir dar sangue. Voluntários apareceram de imediato, como era habitual. 

O Unimog arrancou carregado, mas antes de chegar ao Hospital, despistou-se junto ao Bairro da Ajuda, já muito perto do Hospital. Mais feridos. Mais dor. Mais sangue. Mais sofrimento. Daí a razão de tantos feridos na caserna aquela hora. Eram os que estavam menos mal. O Hospital estava cheio e teve que dar alta aos que inspiravam menos cuidados. Era a guerra na verdadeira acepção da palavra.

Foi assim o meu primeiro dia de Todos os Santos que passei na Guiné. Há dias que não se esquecem e aquele foi um deles.

Carlos Pinheiro                                     


1) Militar recém-chegado à Guiné.
2) Dinheiro.
3) Terrenos pantanosos.
4) “Festa”, pancada, algo de anormal.

Nota: 3º foto da autoria do nosso camarigo Armando Pires, publicada no blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" e aqui reproduzida com a devida vénia.

2 comentários:

Carlos Pinheiro disse...

Obrigado Miguel pela prontidão da publicação em cima da hora. Mas hoje é mesmo o Dia de Todos os Santos, dia em que passam 47 anos sobre o relatado. E uma stuação como esta, para um pririquito acabdo de chegar à Guiné, meteu logo uma confusão do caraças. Mais uma vez obrigado
Carlos Pinheiro

Anónimo disse...

Amigo Carlos Pinheiro.
A sua descrição transportou-me, para a minha chegada como "piriquita". Foi pela primeira vez, entre outras,em Julho de 1962. Enquanto esperava no aeroporto, para seguir até Bissau, fui abonada com a praga dos mosquitos, que me deixaram num péssimo estado. Tive a sorte de ter cama com mosquiteiro e o repelente do LM-(Laboratório Militar), que cheirava muito mal, mas evitava o pior!..
Dormi várias noites no Hospital Militar, cuja foto aí vem publicada. Tínhamos sido aí colocadas, duas enfermeiras antes da "Guerra ficar acesa"!..
Realmente a sua chegada foi bem traumatizante e hoje recorda-a. Apesar de tudo o que passou, ainda bem que pode contar-nos esta sua experiência.
O Miguel está sempre disponível para publicar todas as histórias que lhe chegam, ao conhecimento.
"Recordar é viver"
Um abraço.
Mª Arminda