FUI PARA A GUERRA PARA OS DEMBOS,
NORTE DE ANGOLA, EM 1973.
REGRESSEI EM 1975 - PARECE QUE FOI ONTEM
Já lá vão 42 anos, parece que foi ontem.
Recordo com alegria e satisfação tudo o que já lá vai, pois fui daqueles Combatentes que foram para a guerra do ultramar na década sessenta/setenta que tiveram a felicidade de ir e voltar com vida, o que não aconteceu a muitos que tombaram por lá. E a outros que já tombaram por cá e não podem contar as suas histórias como eu e outros companheiros.
Foi no
longínquo ano de 1973, mas bem próximo na minha memória. A nossa companhia
desembarcou no aeroporto de Luanda às nove horas da manhã, fomos colocados em Berliets
que nos esperavam e que nos levaram para o Grafanil. Eu era um rapazinho
nascido e criado numa aldeia rural do Vale do Lis, habituado a viver e crescer
na aldeia, nos campos e pinhais e que não trocava a sua aldeia por nenhuma
cidade do mundo. Afinal, mal conhecia a minha cidade de Leiria. Lisboa, essa, só
de passagem quando fui para o aeroporto para embarcar para Angola.
Assim que
desembarcámos e ao passarmos pelas ruas da cidade de Luanda em direcção ao
Grafanil, tanto eu como a maioria dos meus camaradas íamos pasmados e de boca
aberta ao vermos tanta beleza - uma cidade nova em tudo e muito linda, muito
colorida, com as lindas acácias e lindos e perfeitos prédios, uma cidade
maravilhosa onde se viam muitas pessoas brancas e negras, estas em maior número.
Passámos
quatro dias no Grafanil. Havia ali um cinema e um bar onde podíamos comprar bebidas;
foi aí que conheci e comecei a beber groselha e coca-cola.
A primeira
lição que aprendi em Angola foi logo no primeiro dia, à tardinha, ali no bar do
Grafanil. Aproximei-me de uma enorme árvore com suculentos frutos. Antes de
apanhar um para provar não o quis fazer sem me esclarecer pois não sabia quem
era o dono. Ia a passar um militar negro com a farda de camuflado já muito
velha e fiz-lhe esta pergunta «Ó preto, sabes dizer-me que árvore é esta? E
será que estes frutos são bons para comer? Se forem, posso apanhar um?»
O soldado
negro parou, ouviu as minhas perguntas e calmamente respondeu «Meu amigo, vê-se
bem que és maçarico e ninguém te ensinou o mais importante, saber falar com as
pessoas de outra cor. Não te preocupes, amigo, eu vou ensinar-te. Olha, trata a
pessoa de outra cor por Patrício. Este nome aqui em Angola quer dizer que somos
da mesma cor. Queres ver como vou tratar aquele branco?” Ele chamou um soldado branco
velhinho por Patrício, e entenderam-se; tomei consciência de que era a primeira
lição que eu aprendia na minha comissão.
Ainda deu para
ir com os meus colegas a pé conhecer algumas ruas e avenidas e as praias de
Luanda e a bela e maravilhosa baía. Gostei. Chegou então o dia de partirmos com
destino a Quibaxe, que ficava a duzentos quilómetros de distância. Para meu
espanto o nosso transporte foi em camionetas de taipais altos que por cá eram
utilizadas para transportar porcos e vacas… Fizemos o percurso em velocidade
lenta; tendo saído de madrugada chegámos a Quibaxe à noite; mantivemo-nos em pé
durante todo o trajecto, encostados aos taipais e de arma em punho, seguindo as
ordens do nosso Comandante.
Lembro que
passámos ao Caxito, ao Úcua, onde páramos. Fiquei muito triste e perturbado ao ver crianças e idosos negros falando o português a pedir a nossa ração de
combate, dizendo que tinham fome. Pensei no momento «Então, afinal diz-se que
Angola é Portugal, mas em Portugal nunca vi isto! Que guerra é esta com toda
esta gente com fome a pedir comida?».
Antes de
chegarmos à Pedra Verde, a coluna de camionetas de transporte de gado parou. Um
oficial avisou para termos muita atenção, que a todo o momento podíamos sofrer
uma emboscada. Nenhum de nós sabia o que era uma emboscada… e logo todos nós
ali metidos em gaiolas de porcos e vacas…
Mesmo ao
passarmos junto da Pedra Verde ouvimos um tiro, ali bem pertinho de nós. Toda a
coluna parou, ninguém se mexeu. Alguém foi perguntar-nos se tínhamos sido nós -
não tinha sido ninguém da nossa malta, tinha sido na mata… e lá seguimos
viagem.
Ao passarmos junto
duma enorme Sanzala de nome Quesso, mesmo à beirinha da estrada, fiquei muito
feliz e contente e com outra impressão diferente à que trazia na minha cabeça,
ao ver no meio da Sanzala num alto mastro a minha linda e amada Bandeira. Ali estava
representado o meu País, Portugal. Afinal aquele povo era tão português como
eu.
Ao chegarmos
ao Piri foi o fim da macacada. Estavam algumas Berliets carregadas de soldados
em altos berros e cantorias, com muitos cartazes e uma improvisada câmara de
televisão... Eram os soldados da companhia que íamos render que tinham vindo
ali ao controlo para nos receberem e nos escoltarem até Quibaxe,
Foi um
tormento até chegarmos ao Quartel… Para nós, que não estávamos preparados, foi
uma cena um bocado revoltante para mim. Ainda recordo os cânticos que eles
entoavam - e que nós, afinal, viríamos a utilizar mais tarde quando, no fim do
nosso tempo, fomos rendidos por novos maçaricos…
«Maçaricos já
chegaram, ai ai ai que coisa boa, fazem cá operações, fazem cá operações, e nós
vamos para Lisboa»
«Ó maçarico,
trabalha agora, olha a velhice que se vai embora, que se vai embora, que se vai
embora»
«Ora vai para a mata, ó meu malandro, por tua causa é que eu
aqui ando, é que eu aqui ando, é que eu aqui ando»
Mas nem tudo
foi mau, todos nós debaixo de uma tremenda carrega de nervos, eu só pensava «Mas
afinal que mal fiz eu para estar a receber esta palhaçada? Ai minha mãe, por
favor vem buscar-me, isto é só gente doida».
Ao chegarmos
em frente ao Quartel de Quibaxe fomos obrigados a dar a volta de honra por toda
a vila, a servir de palhaços, mas finalmente lá entrámos no grande e
maravilhoso Hotel 5 Estrelas que iria ser a nossa casa durante toda a nossa
comissão.
Assim que entrámos
à porta de armas passou a reinar finalmente a calma e o sossego; tudo serenou,
desembarcámos das pocilgas dos porcos que não deixaram saudades a ninguém e fomos
recebidos pelo Comandante velhinho e por todos os “veteranos”.
Os velhinhos militares
tentavam encontrar no meio da nossa malta conterrâneos seus. Eu encontrei um
amigo de uma aldeia vizinha, que por sinal veio a ensinar-me o ABC daquela
guerra e de toda aquela zona que eu desconhecia, o que me permitiu levar a bom
termo uma comissão sem grandes percalços.
A noite chegou
e a hora do tacho também. Fomos todos - velhinhos e maçaricos - para o
refeitório Foi uma festa de arromba, comida boa e à farta com direito a baile,
feito com um conjunto musical da Sanzala do Banza Quibaxe, que faziam inveja a
qualquer um de cá da Metrópole.
Os velhinhos, para nos animarem e para esquecermos
a praxe que tínhamos levado, fizeram-nos uma surpresa. Foram às sanzalas
vizinhas, convidaram as raparigas para participarem no baile, onde todas elas
deram festival. Fizeram amizades com todos nós, maçaricos, agarraram-nos e
ensinaram-nos a dançar merengue. Foi lindo, e no final cada um de nós ficámos a
saber quem passava a ser a nossa lavadeira para toda a nossa comissão.
Foi em 1973,
mas parece que foi ontem. Recordo esses momentos com alegria e satisfação.
Manuel “Kambuta
dos Dembos” Lopes
5 comentários:
O Manuel Lopes "Kambuta dos Dembos" recorda com piada e ao mesmo tempo com um misto de saudade, a sua chegada a África. A viagem e as partidas que os veteranos lhe fizeram e sempre o faziam aquando das rendições tão desejadas, após o términus das suas comissões. Sempre fizeram aos maçaricos, periquitos e outros "itos/as"!.. Foi ontem, mas já passaram muitos anos e eramos jovens, mas há factos que não se esquecem e que se recordam como se tivessem acontecido apenas há dias, tão presentes ficaram nas nossas e, na sua memória,(o primeiro dia em terras africanas). Vá recordando e contando. Um abraço para o amigo e também para a Hortense.
M ª Arminda
O Manel estava-se a esticar :-)
Não sei porquê mas a sua pose faz-me lembrar filme Nascido Para Matar, mas numa cena que foi cortada, em que o protagonista tinha uma sessão de convívio com umas "piquenas" que concorriam a misse Angola.
O Manel era como se costuma dizer ....membro do jure do a trás referido certame .
Um abraço Manel e qual delas ganhou?
Um abraço ao Manuel Lopes!
Se há regressos bons, os melhores são sem dúvida os das guerras!
É o coração a falar. Gostei. Parabéns Manuel. Um abraço e até sexta.
Carlos Pinheiro
Por aqui nada de novo sempre vai dar a Dembos
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