segunda-feira, 25 de agosto de 2014

P531: QUATRO ANOS COMPLETADOS, A CAMINHO DOS CINCO...





O Miguel Pessoa, sempre incansável com o blogue da Tabanca do Centro, pediu-me se lhe enviava um texto, mesmo antigo, para publicar.
Comecei à procura, e depois pensei que com todo o trabalho que o Miguel tem, merecia da minha parte um esforço para escrever algo de novo, em vez de ir ao “arquivo”.
Lembrei-me então de escrever uma espécie de reflexão (coisa importante, pois então), sobre a Tabanca do Centro e estes anos que vão passando.

Em primeiro lugar, constato que a Tabanca do Centro é um “fenómeno” de encontro, de alegria, de camarigagem e até de afectos, sem a mínima dúvida.

Estaríamos bem longe de pensar, naquela viagem de automóvel para o Porto e volta, que ainda hoje andaríamos a realizar almoços em Monte Real, sempre a crescer em número de participantes, que mais não são porque a sala não o permite.

Nascida da vontade de vários combatentes da Guiné, radicados no centro do país, se reunirem periodicamente à volta do famoso “cozido à portuguesa” da Pensão Montanha, em Monte Real, logo no primeiro encontro/almoço recebeu combatentes vindos, não só do centro do país, mas também de Lisboa e do Porto, alguns dos quais se tornaram dos membros mais assíduos.

Logo também, sem nenhum problema, se abriram os encontros/almoços a combatentes de outras guerras de África, e até, a alguns jovens, (ou seja, gente abaixo dos 60 anos!), que queriam privar de perto com estes “gloriosos malucos combatentes”, que um dia deixaram as suas “casinhas” em Portugal, para irem passar umas “férias”, (normalmente de cerca de dois anos), a paragens africanas, especialmente na Guiné, Angola e Moçambique.

Desde sempre a ideia e a prática, foi o encontro saudoso, mas também salutar e catártico, alegre, mais ou menos ruidoso, e sobretudo muito, muito unido, sem diferenças, nem grupos “especiais” ou pessoais.

Obviamente, cada um procura aqueles com quem tem mais afinidades, mas nunca por nunca ser, se deixará criar grupos que de alguma forma, sejam separados e não façam parte do todo que é a Tabanca do Centro.
E isto é muito importante, porque a Tabanca do Centro só existe como unidade de combatentes, em que todos se respeitam e todos têm a mesma dignidade, e se assim não for, é porque alguém não entendeu isso mesmo.

Alguns, como o Miguel Pessoa, quiseram assumir a missão de relatar o que acontece nesses encontros, e, tirando do seu tempo em que poderiam estar a conversar e a conviver com os outros, vão pelas mesas tirando fotografias, aqui e acolá, e tentando que os que vêm pela primeira vez, informem os seus dados completos, para depois receberem a já famosa revista Karas da Tabanca do Centro, bem como as notícias dos encontros que irão ter lugar.
É uma missão voluntária, que envolve esforço e muito trabalho, e que, por isso mesmo, deveria ser sempre convenientemente agradecida, e nunca criticada.

Os encontros/almoços da Tabanca do Centro são momentos de convívio muito importantes para os combatentes, e não são nenhum “festival” de “comezaina” em excesso, que não é, nem nunca será a intenção que nos norteia.

A Tabanca do Centro tem um “núcleo”, que ajuda e aconselha, para que nunca se percam as intenções iniciais com que a mesma foi fundada e esse núcleo é constituído pelo Miguel Pessoa, Vasco da Gama, José Eduardo Oliveira (JERO) e Joaquim Mexia Alves.

Obviamente que todas as sugestões são bem vindas e apreciadas, para melhorar sempre este encontro de combatentes, que se quer cada vez mais unido.

Haveria tanto mais a dizer sobre a Tabanca do Centro, mas o pessoal está de férias e o texto já vai longo.

Por isso mesmo, até 26 de Setembro, em Monte Real, onde vos esperamos.


Monte Real, 25 de Agosto de 2014

Joaquim Mexia Alves

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

P530: DO JOSÉ BELO... LÁ DE LONGE




...Nós, os que voltámos, nunca iremos esquecer o sabor acre daquela poeira vermelha que comungámos em rebentamentos de minas.

Nós, os que voltámos, ainda hoje sentimos o calor da terra que abraçámos e contra a qual nos comprimíamos em desespero de emboscadas.

Nós, os que voltámos, ainda ouvimos o ruído miraculoso das chuvas na mata... os odores variantes da terra molhada... os trovões na noite tropical.

Nós, os que voltámos, recordamos o bater matinal dos pilões em tabanca tranquila.

Nós, os que voltámos!

A terra vermelha lá está... Abraçando-os.

As chuvas caem, misturando-se com invisíveis lágrimas de saudade...

Gritos abafados de "não haverem sido".

Os relâmpagos iluminam as lajes, ano após ano... 

Ver-se-ão nomes?

Datas?

Referências militares?

Ou, simplesmente... um soldado de Portugal... esquecido.


(Cemitério de Bissau/Talhão Militar. Foto de Tiago Teixeira-2012)

 José Belo      



quarta-feira, 13 de agosto de 2014

P528: LEMBRANDO UMA EVACUAÇÃO...



A DAR AO AMBU

A actividade que nós, enfermeiras pára-quedistas, desenvolvíamos no Teatro de Operações da Guiné, proporcionava-nos por vezes momentos de grande realização profissional. As características particulares da geografia do território em parte também ajudavam. Havia bastantes aquartelamentos a menos de 30/45 minutos de voo do Hospital de Bissau, o que significava que, desde o pedido da evacuação até à entrada do evacuado no hospital poderia decorrer, nesses casos, um período máximo de duas horas, com a forte possibilidade de a evacuação ter o apoio de uma enfermeira, o que aumentava um pouco mais as hipóteses de sobrevivência do evacuado.

Também o facto de o tempo gasto numa evacuação ser mais curto que noutros territórios aumentava a disponibilidade das enfermeiras para fazerem mais evacuações e garantia assim uma maior qualidade dos serviços prestados.

Estou convencida que, comparativamente com os outros Teatros de Operações, essas características permitiam que em igualdade da gravidade do estado dos evacuados, o ferido tivesse mais hipóteses de sobreviver no território da Guiné - possibilidade de maior apoio do pessoal de enfermagem e menor distância a percorrer até à unidade hospitalar.

Assim, viu-se muitas vezes evacuar feridos em estado desesperado que, devido ao apoio rápido recebido, conseguiam sobreviver contra todas as expectativas. Essas "vitórias" davam às enfermeiras uma grande motivação para prosseguir o seu trabalho.

Lembro-me de uma evacuação que fiz a Guidaje, com essas características. Estávamos em 1972 e fomos chamados para uma evacuação de um ferido militar em estado muito grave. Tratava-se de um cabo enfermeiro do Hospital Militar de Bissau que, no período de férias do enfermeiro colocado em Guidaje, o tinha ido substituir no seu serviço. Estava quase a acabar este destacamento em Guidaje quando teve que ir socorrer um milícia local, o qual tinha pisado uma mina numa zona próximo do aquartelamento, de que tinha resultado a perda de uma perna. Quando ajudava o milícia na sua deslocação para o quartel, aquele teve a infelicidade de pisar uma segunda mina, o que provocou a perda da segunda perna, bem como a amputação de uma das pernas do enfermeiro.

À nossa chegada verifiquei as dificuldades em que o cabo se encontrava, pois tinha perdido bastante sangue, os camaradas não tinham conseguido ainda pôr-lhe o soro e tinha dificuldade em respirar pois encontrava-se num estado de extrema debilidade.

Coloquei os dois feridos nas macas colocadas na traseira do DO e dediquei a minha atenção ao seu estado, enquanto voávamos para a Base. Curiosamente, o milícia encontrava-se mais estável, apesar de ter tido as duas pernas amputadas. Quanto ao cabo enfermeiro, consegui finalmente colocar-lhe o soro e dada a sua dificuldade em respirar coloquei-lhe o Ambu[1], que não é mais que uma bomba manual usada para aumentar o fluxo de ar para o doente e consequentemente a sua oxigenação.

Foi um voo extremamente duro - para o doente, claro, e para mim, que tive que dar permanentemente ao Ambu, que o estado do doente assim o exigia. Em casos graves como este, podíamos decidir pela transferência do evacuado para um AL-III, que recebia o evacuado na placa da BA12 e o transportava directamente para o hospital. Assim fizemos, transferindo o ferido para o heli e dirigindo-nos para a placa do hospital, de onde o levei directamente para o bloco operatório, onde era aguardado.

Devo dizer que durante uma ou duas semanas continuei a sentir dores nos braços , devido ao esforço feito com o Ambu durante toda a evacuação. Mas o meu trabalho continuou e eu fui esquecendo este episódio.

Poucas semanas depois, quando preparava no Hospital de Bissau a evacuação dos feridos para Lisboa, a fazer no DC-6, percorria o Serviço de Recuperação do Hospital quando subitamente ouvi atrás de mim um grito estridente: "Devo-lhe a vida!". Recuperando do susto, dirigi-me ao doente, que me confirmou ser o cabo evacuado de Guidaje, que tanto trabalho me tinha dado. Disse-me que durante a evacuação tinha conseguido abrir os olhos durante uns momentos e, tendo-me reconhecido (ele era do Hospital de Bissau), pensou: "Ao menos morro ao pé de alguém conhecido". Mas não tinha morrido e estava até bastante melhor; e pelo grito que deu naquele dia, estou convencida que terá conseguido ultrapassar totalmente esta fase má da sua vida.

                                                                     Giselda Pessoa


[1] AMBU - Airway Maintenance Breathing Unit - Bolsa dotada de válvula unidirecional permitindo criar um fluxo contínuo através de sua compressão.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

P527: A PROPÓSITO DE UM ANIVERSÁRIO

O AGRADECIMENTO DO MANUEL "KAMBUTA" LOPES

A título excepcional, e dada a "enorme carga" de afectos que envolve o texto de agradecimento do Manuel Lopes (Kambuta) pelas mensagens de  parabéns que recebeu de inúmeros membros da Tabanca do Centro, aqui o publicamos.

Meus amigos/as - Minha verdadeira Família Tabanca do Centro


Eu Manel, com a minha modesta educação, não posso nem devo agradecer aos meus puros sinceros e bons amigos/as só com um "obrigado e passem bem".

Amigos/as, vou-vos transmitir o que sinto e o que o meu coração e sentimento me obriga. Só sei dizer, gostava de ter um coração enorme, fazer dele um salão de bem-estar para meter dentro dele e proteger e mostrar-lhe o que sinto por eles/as à minha verdadeira Família, que são os meus verdadeiros amigos que tanto têm feito por mim sem se aperceberem, têm-nos ajudado a viver, a mim e à minha Hortense.

Vou prometer, tentar e fazer os possíveis, para voltar a ser o Manel Kambuta que, sempre fui.
Abraços


                  PALAVRAS PARA QUÊ


          O Manel diz o que sente

          Diz o que lhe manda o coração

          Os verdadeiros e sinceros amigos

          São a sua família/o seu irmão

          Desejo-lhe o melhor do mundo

          O dobro que quero para mim e para os meus

          Mais não tenho para lhe dar

          Para todos vós e para os seus.


Manuel Kambuta           

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

P526: MAIS UM VOO NOS CÉUS DA GUINÉ


O mecânico acompanha-me enquanto faço a inspecção de 360º ao Fiat G-91 estacionado na placa, na BA12. Sinto a ansiedade habitual dos últimos voos. Também não admira - quando sabemos que vamos encontrar fogo de anti-aérea e possíveis Strela, é natural que fiquemos preocupados. 
 
Como tem vindo a ser habitual, a tensão dá-me voltas ao estômago enquanto continuo a inspecção exterior ao avião. Parece que tenho vontade de vomitar mas nada sai. Tento disfarçar, que o mecânico continua ao meu lado e ninguém gosta de dar parte de fraco ao pé dos outros.

Mas os antecedentes não ajudam muito... Já "fui ao charco" uma vez e não gostei. E o problema é que matematicamente tenho as mesmas hipóteses que os outros de ser abatido - não me parece lá muito justo! Só voltei à Guiné há poucas semanas e a readaptação tem sido difícil; é muito penoso para mim recordar o tempo que estive sozinho no mato, depois da minha ejecção, sempre na iminência de ser "apanhado à mão", por isso é natural que esteja preocupado.

Aliás, também os mecânicos andam preocupados. É grande a sua responsabilidade - o avião tem que funcionar que nem um relógio, o armamento não pode falhar, a Martin-Baker* tem que funcionar se tudo o resto correr mal - nenhum quer ser responsável pela perda de um piloto.

Logo hoje, que era o meu dia de folga! Bom, nesta bagunçada nada é garantido e temos que ser adaptáveis às mudanças... Mas a Esquadra foi solicitada para uma série de missões importantes que podem contribuir para diminuir o fluxo de pessoal e material que se interna na Guiné vindos do exterior. Se resultar, poder-se-á reduzir a intensidade das flagelações aos nossos aquartelamentos; este esforço já se prolonga há dois dias e todos juntos não somos demais.

Neste momento sou o oficial mais antigo (um tenente!) a seguir ao Comandante de Esquadra, por isso, como oficial de operações (nome pomposo!) cabe-me a mim indicar os pilotos para as missões. Naturalmente, o meu nome tem que aparecer lá (o exemplo tem que começar por nós) e a folga, paciência!, fica para outro dia.

O avião está OK, o armamento pronto, como normalmente - o pessoal da linha não falha, como de costume - e eu dirijo-me para a escada para ocupar o meu lugar no "cockpit" - controlo um último espasmo e enquanto subo a escada verifico, penduradas nela, as diferentes cavilhas de segurança que o mecânico retirou.

Coloco o capacete, o mecânico ajuda-me a colocar os cintos. Percorro com os olhos o "check-list" para confirmar que fiz todos os procedimentos correctamente antes de pôr em marcha. O chefe da formação, no avião ao meu lado, faz sinal com a mão para pormos em marcha. Primo o botão do cartucho de arranque do motor, este começa a rodar e estabiliza nas rotações normais. Executo os restantes procedimentos, acciono a descida da "canopy"** e faço sinal ao mecânico para tirar os calços das rodas.

Tudo OK! Aumento as rotações do motor para sair do estacionamento e inicio a rolagem do meu avião atrás do outro, fazendo antes um aceno de despedida ao mecânico que me deu a saída.

Toda a excitação acumulada anteriormente parece abandonar-me. Estou ali só, dentro do avião, controlando os meus medos de modo a que não interfiram com o cumprimento da missão. Temos de esquecer tudo e concentrarmo-nos totalmente no voo que temos pela frente, vigiando o espaço à nossa volta, tentando detectar alguma ameaça para o nosso ou para os outros aviões.

Finalmente estamos no ar e dirigimo-nos para o alvo definido no "briefing" antes do voo. Tudo corre normalmente e sinto uma estranha sensação de calma que contrasta com o nervosismo anterior. Os "Tigres" da Esq. 121 estão no ar para mais uma missão de rotina nos céus da Guiné...


                                                                       Miguel Pessoa

*  Cadeira de ejecção do Fiat G-91 R4
** Cobertura da cabina

Foto 1 de Miguel Pessoa
Fotos 2 e 3 de autor desconhecido, cedidas pelo Paulo Moreno